MINHAS MEMÓRIAS DO ALEXANDRE VANNUCCHI, O MINHOCA – MARCELO CHUEIRI

Meu nome é Marcelo e agora estamos no ano de 1973.

Curso engenharia na USP, aqui sou o Turco, a maioria de nós tem apelidos, Cascão, Brócolis, Pato, Cacareco, Babão e por aí vai. Muitos nem sabem meu nome de batismo.

E tem o Minhoca, o Alexandre da Geologia, grande amigo e companheiro na luta pela melhoria da Educação e na resistência democrática à pior Ditadura que o Brasil conheceu.

Nos conhecemos quando os Centros Acadêmicos da USP decidem se unir em um Conselho que unisse estudantes de todas as faculdades da USP, o CCA USP.

Todas as entidades estudantis mais amplas tinham sido colocadas na ilegalidade pela Ditadura Militar, com mais violência a partir do famigerado AI-5, em dezembro de 1968: a UNE, Entidade Nacional, as UEE’s, Entidades Estaduais e os DCE’s, Diretórios Centrais de cada Universidade passaram a ser perseguidas. Tudo com o objetivo de impedir as manifestações estudantis que se opunham ao regime ditatorial e que tiveram seu auge em 1968.

O AI-5 suspendeu o Congresso, acabou com eleições diretas em vários níveis, desfigurou o STF, cassou e prendeu Professores, Promotores, Deputados, Líderes sindicais e estudantis, censurou toda a imprensa.

E criou órgãos de repressão clandestinos, especialmente os DOI-CODI, onde não existia mais lei e viram regra a tortura, assassinatos e sumiço dos corpos dos oposicionistas, um Estado paralelo, no qual só existia liberdade para a mais violenta repressão.

Voltamos há 50 anos, março de 1973, e uma notícia corre como um raio pela USP: o Minhoca caiu, foi preso pelo DOI-CODI e nada se sabe dele num primeiro momento.

Logo a seguir a notícia trágica, Alexandre está morto e desfigurado, e a repressão inventa um “atropelamento” dele por um caminhão, uma “fake news” 30 anos antes das redes sociais.

Em meio à nossa dor e indignação, reagimos!

O CCA USP – que o Alexandre tinha ajudado a construir – se reúne rápido e decidimos fazer uma Missa em homenagem ao nosso Minhoca e de denúncia do crime bárbaro.

Em 1972, tínhamos feito duas ações fortes contra a Ditadura: Um plebiscito contra o Ensino Pago, que a Ditadura queria implantar nas Universidades Públicas, quando 20 mil estudantes da USP deram um sonoro NÃO, que ocasionou a ira do então Ministro da Educação Jarbas Passarinho, nos acusando de fazer uma “aliança entre ricos e comunistas”. O ministro se desmoraliza e nunca mais o tema volta à pauta da Ditadura.

E o mais importante ainda, o CCA USP dá apoio público à maior greve de fome de presos políticos de nossa história em maio de 1972, quando fomos levar ao então novo Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, que tinha assumido a liderança contra as absurdas condições carcerárias em que viviam as inúmeras presas e presos políticos do regime ditatorial.

Essa união e ação conjunta com Dom Paulo cria um novo canal democrático, com apoio da CNBB, OAB e ABI que serão essenciais na crise que se abre com o assassinato do Alexandre.

A proposta inicial nossa é fazer a Missa na Cidade Universitária, mas Dom Paulo. sabiamente, pondera que na USP não tínhamos nenhuma garantia, mas “no meu território, a Catedral da Sé, eu garanto a Missa”.

Começamos a convocação, sabendo que tinha que ser grande a mobilização, se tivéssemos pouca gente, seríamos presa fácil da repressão.

A capacidade do CCA chegar a todas as Faculdades e, o canal com Centros acadêmicos de outras universidades, faz espalhar rápido a ideia da Missa.

Dom Paulo mobiliza a Igreja com sua liderança e capilaridade. Mais uma vez, a OAB e a ABI dão apoio e respaldo. E nos reunimos com Ulysses Guimarães, presidente do MDB na Assembleia Legislativa de São Paulo, conseguindo mais apoio político e discursos no Congresso. Ulysses nos diz ao final da reunião: “Muita coragem de vocês meus jovens, mas muito cuidado, esses militares são capazes de tudo”

Já estamos em 20 de março, temos que acertar a data. Precisamos de tempo pra mobilizar e escolhemos dia 30 de março uma sexta, tem que ser um dia útil, a Praça da Sé tem que estar na muvuca de Sampa. O ideal seria 31 de março, mas era sábado e o Centro estaria vazio. Mesmo assim a Ditadura e sua repressão consideram, corretamente, que a data é também uma afronta e um recado nosso…

A Missa é um sucesso, mais de 4 mil presentes, Catedral lotada pra homenagear Alexandre e ouvirmos a dura e corajosa fala do Arcebispo de São Paulo.

Dentro da igreja aparece a TV Gazeta com a desculpa de transmitir o evento, mas suas câmeras vão filmando a todos nós, fileira por fileira, um arranjo com a repressão para identificar os presentes e tentar achar alguém que perseguiam. Uma cena impossível de esquecer, muitos tapando o rosto ou virando de costas… Em volta da catedral muitos agentes (in)disfarçados e a orientação ao final da Missa era sairmos em pequenos grupos como autoproteção.

Acontecia o primeiro grande ato político de massa após o AI-5, um grande avanço da resistência democrática no auge da Ditadura que ainda demoraria 12 anos para cair.

Querido Minhoca, seu martírio não foi em vão! Você um Ser Humano admirável, sensível, que levava a vida a sério, ótimo aluno, companheiro e filho. Que sonhava com um Mundo melhor, um Brasil justo e democrático e que abruptamente foi tirado de nós, sem ver que sua luta deu muitos frutos nos anos que se seguiram, embora tenhamos muito o que trilhar para a plenitude de nossos sonhos.

Você teve o papel de ajudar a construir a força política que usamos para revidar à altura o crime contra vc e todas e todos nós e manter vivos nossos sonhos.

Houve muitas prisões e assassinatos em 1973 e anos seguintes, mas tínhamos aprendido caminhos para isolar e desagregar as bases de apoio do regime, a sociedade começava a perder o medo e ter esperança novamente.

Em 1975, ocorre mais um caso de morte sob tortura que tem muita repercussão (entre muitos outros): o jornalista Vladimir Herzog aparece enforcado na sua cela de preso político, num falso suicídio. A reação é imediata: Dom Paulo abre a catedral de Sé para o protesto e denúncia, dessa vez um Culto Ecumênico, envolvendo várias organizações religiosas

Em 1976, eu já trabalhava como engenheiro e cursava o curso noturno da Física e pude participar da reorganização do DCE da USP em eleições livres e à luz do dia, com a participação de milhares de alunos da USP.

E o nome do DCE não podia ser outro: ALEXANDRE VANNUCCHI LEME

Alexandre você continua e está presente!

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Marcelo Chueiri é engenheiro e professor, militante ativo em várias frentes contra a Ditadura entre 1968 e 1985, foi Secretário de Desenvolvimento em Guarulhos e Embu das Artes, Diretor da Agência de Desenvolvimento de Guarulhos e de São Paulo. Atua em projetos de Desenvolvimento Sustentável atualmente

4 comentários sobre “MINHAS MEMÓRIAS DO ALEXANDRE VANNUCCHI, O MINHOCA – MARCELO CHUEIRI

  1. Excelente texto Marcelo, minha admiração por vc só faz crescer.
    Meu pai foi preso politico em 1970, saiu vivo do DOPS, não sei quanto tempo depois, eu era criança, alias ao ser preso eu estava com ele, um anjo protegeu a mim e a minha irmã neste dia.
    Tinha um amigo dele de nome Paulo que morava em Guarulhos, ele tinha duas filhas e brincávamos juntas, gostaria de encontrar estas, hoje mulheres. Queria saber do seu Paulo.
    Enfim, eu ouço você, o Amaury e todos os outros companheiros que foram vitimas da ditadura, e penso nos horrores que meu pai passou na prisão..
    Ditadura Nunca Mais.

  2. O brutal assassinato de Alexandre Vannucci Leme, o Minhoca da Geologia, foi crime de Estado, como muitos outros perpetrados pela ditadura civil-militar que reinou durante mais de vinte anos no Brasil. Conhecemos a verdade, houve reparações financeiras e simbólicas, mas falta a justiça. Sem ela a nação está condenada à repetição. Temos uma oportunidade histórica de punir hoje os agentes públicos que atentaram contra a democracia nos últimos anos. Quanto aos torturadores e assassinos que se autoanistiaram, sempre é tempo de alcançar os que estão vivos. Antes tarde do que nunca. 50 anos sem Alexandre. E a luta continua.

  3. O relato é uma aula de história imperdível. Mostra a coragem dos jovens contra um regime que sufocava, tirava direitos e liberdades.

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