A ARMADILHA – A QUESTÃO DA SEGURANÇA – p.10

Jean Marc von der Weid, março de 2023

É frequente, na política brasileira, levantarem-se fantasmas que anunciariam o nosso futuro. Os protótipos negativos mais comuns são os nossos vizinhos, Venezuela e Argentina. Ou mais distantes, como Cuba e Nicarágua. Os críticos da direita sempre acusam a esquerda de querer levar o Brasil para estes modelos vistos como infames ou fracassados. Entretanto, o modelo para o qual o Brasil parece se dirigir é a Colômbia de alguns anos atrás, quando o narcotráfico mandava no país. Por mais de uma década, os cartéis controlavam tudo: polícia, exército, judiciário, partidos, economia. Foi um enorme esforço, nacional e internacional, para trazer de volta o país a uma situação de relativa normalidade.

A situação da segurança no Brasil é para lá de dramática. A força policial é enorme, com mais de 500 mil PMs, sem falar dos agentes da polícia civil. Entretanto, o crime organizado controla territórios impressionantes, sendo os exemplos mais chocantes o domínio de mais da metade da área do município do Rio de Janeiro, a segunda cidade do país, e de amplas áreas de garimpo na Amazônia. É menos conhecido do público o fato de que muitos dos agricultores familiares do nordeste já não habitam em residências nas suas áreas produtivas, indo morar nas “pontas de rua” de aldeias e vilas, por medo da violência da bandidagem.

Com todo este aparato policial, o crime grassa descontrolado em todo o país. Há uma guerra digna dos números daquela travada pelos americanos no Vietnã, com dezenas de milhares de vítimas, muitas entre os próprios policiais, mas muitas mais entre a população, sobretudo nos bairros mais pobres, como as favelas do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Morrem muitos bandidos, mas morrem mais inocentes moradores. As vítimas são sobretudo os pretos e os pardos, os jovens e os pobres.

A polícia está infiltrada e corrompida pelo crime organizado, além de ter se politizado irregularmente ao longo das últimas décadas. O sindicalismo policial provoca enfrentamentos com os governos civis que deviam controlá-lo, com inacreditáveis greves que levam a população a um estado de terror, totalmente vulnerável à ação das organizações criminosas. Os presídios, com uma população carcerária classificada entre as maiores do mundo, estão sob controle dos Comandos (PCC, CV, AdA, outros), que fazem deles espaço de recrutamento e formação de quadrilhas. Mesmo naqueles de segurança máxima, os dirigentes das quadrilhas atuam sem peias para comandar seus “soldados” do lado de fora. Acontecimentos como as duas semanas de ataques de criminosos a dezenas de cidades no Rio Grande do Norte têm ocorrido com frequência crescente.

E quando não são as gangues, os controladores de território são as milícias, formadas por ex-policiais. Uma ou outra destas formas de controle criminoso implica em se ter espaços importantes territórios urbanos ou rurais sem a presença do Estado. O crime organizado impede que serviços públicos sejam remunerados, já que ele intercepta e desvia os pagamentos por água, luz, internet, outros. Toda a economia destes territórios está sujeita a uma taxação de “proteção”. Empresas como a Light, no Rio de Janeiro, cobram mais caro dos usuários que residem fora das áreas de controle de gangues ou de milícias, para compensar as perdas.

O poder de fogo destes personagens só faz crescer, devido às medidas tomadas pelo governo Bolsonaro liberando a posse e porte de armas, inclusive as que eram, até este governo, de uso exclusivo das FFAA. Esta política levou ao crescimento vertiginoso do número de supostos caçadores, atiradores e colecionadores (os “CAC”), que hoje já são mais de 700 mil. Não só esta enorme ampliação da venda de armas facilitou o acesso da bandidagem a mais e mais potentes armamentos e munições como também colocou nas mãos de fanáticos bolsonaristas um poder de fogo extremamente perigoso para o futuro da democracia.

A polícia militar é um foco de ativistas e seguidores de Bolsonaro, e isto também é uma ameaça para a democracia. Pesquisas realizadas durante o governo passado indicaram que perto de 66% dos policiais militares eram bolsonaristas, sendo que as lideranças (que operam com mais poder do que os oficiais) foram identificadas como ativistas apoiando os arreganhos antidemocráticos do ex-presidente.

Não acredito que este contingente seja capaz de tomar a iniciativa de um golpe, tal como sucedeu na Bolívia, mas ele pode criar inúmeros problemas para o governo Lula. Como estão fora do controle da esfera federal e subordinados a governadores (em sua grande maioria de direita e bolsonaristas), as PMs podem provocar grandes traumas políticos pela repressão violenta dos movimentos sociais. O governo federal pode intervir, como o fez em Brasília com sucesso, no caso da intentona de 8 de janeiro. Mas estas intervenções são recursos extremos e podem ser contestadas pelos governadores e pela justiça. Os limites da ação federal podem ser bem maiores em casos de repressão, por exemplo, ao movimento dos sem-terra.

Além de não propiciarem segurança para a população, os PMs são vistos pelos mais pobres, pretos e jovens como uma ameaça constante. E eles tem uma pauta política que Bolsonaro usou para ganhar adeptos. Ele não conseguiu tudo o que queria para beneficiar este público, como por exemplo o iníquo “excludente de ilicitude”. Por outro lado, eles estão em guerra contra o uso de câmeras que filmem as suas ações. E não vão deixar de pressionar por um maior laxismo no controle de sua atividades. Com governadores de direita na maioria dos Estados e uma base de deputados e senadores da chamada “bancada da bala”, os riscos de enfrentamentos, no Congresso e nas ruas, vão ser permanentes.

Uma prova dos nove vai ocorrer na aplicação de medidas de controle das áreas de garimpo ilegal, assim como as áreas de desmatamento ilegal. É claro que este esforço não pode ser todo feito apenas por agentes federais. Veremos qual vai ser o comportamento das PMs se e quando forem convocadas a agir na Amazônia.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundado da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

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