“A liberdade é uma coisa linda. Temos que aprender a linguagem da liberdade”
Militante política, ativista, advogada, escritora, jornalista, apartidária. Mãe, esposa, amiga. Amelinha Teles é uma mulher plural. Na sua voz não se escuta raiva, revanchismo, apenas Luta.
Sua história é extensa e intensa. Nos anos 70 organizou a União das Mulheres em SP. Era do quadro do PCdoB, trabalhando como jornalista em vários jornais clandestinos. Trabalhou no primeiro jornal feminista, em 1975. “Era escrita do PCdoB. Ouvia rádios como a Cubana e a BBC e fazia reportes. Hoje todos conversam, falam, têm acesso a todas as informações”
Educadora popular dos direitos feministas – formou-se em direito para “conhecer os processos para poder lutar pelo empoderamento das mulheres. É preciso entender por que nós, mulheres, somos excluídas da cidadania, por que temos menos valor.”
Os casos de assédio moral/sexual nas relações trabalhistas, de feminicídio e todas as violências contra mulher vêm aumentando ano após ano. Para Amelinha, é preciso construir um mundo sem violência, a partir da consciência e das mobilizações.
Militância feminina e atuação durante a ditadura
“Me tornei feminista sozinha, muito jovem. Fui para a rua ver a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em Belo Horizonte. Magalhães Pinto governador de Minas Gerais e Jorge Carone Filho, Prefeito de BH vinham à frente seguidos de uma maioria de mulheres brancas ‘da sociedade’. No fundo, vinha o povo pobre, maioria mulheres pretas. O povo sendo conduzido por uma elite como massa de manobra. O índice de analfabetismo na época era enorme, principalmente entre as mulheres. Resolvi, então, ensinar as pessoas pelo método Paulo Freire. Com 18 anos, todos acreditamos que vamos mudar o mundo. Logo depois veio o golpe e entrei na clandestinidade”
Foi presa política entre 1972-73, e Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o responsável por suas torturas, o mesmo que Bolsonaro chamou de “o pavor de Dilma Rousseff, ao declarar seu voto a favor do impeachment, num ato cruel e covarde. Naquele momento, ninguém no Congresso fez nada, não protestaram, não impediram a sessão de continuar”.
Neste período, perdeu a guarda dos filhos. Eles foram sequestrados e entregues a um delegado em BH. “Sofreram muito, eram muito pequenos, 5 e 4 anos. Eu só podia inventar contos, histórias, imaginando que estava contando para meus filhos. Estou tentando recuperar na memória e publicar essas histórias”.
“Fui torturada na frente dos meus filhos, do meu marido, que também estava preso. Houve a tortura psicológica, tão ou mais bárbara que a física, quando diziam que eu tinha que ter escolhido: ou ser mãe ou militante política, uma terrorista. Na verdade, me diziam que eu era uma mãe desnaturada e responsável pelo sofrimento dos meus filhos. Com ajuda da minha advogada, consegui recuperar a guarda das crianças”.
Ainda na prisão, Amelinha testemunhou o assassinato de Carlos Nicolau Danielli (dirigente do PCdoB), espancado até a morte sob o comando de Brilhante Ustra, em dezembro de 1972. “Eu tinha caído (presa) algum tempo antes. No dia 28 de dezembro, Danielli chegou no DOI-Codi e foi brutalmente torturado. Podia ouvir seus gritos. Dois dias depois ele estava morto”.
A versão oficial da época era que Danielli teria morrido em decorrência de troca de tiros com a polícia. Após 40 anos, Amelinha Teles e seu marido César Augusto Teles testemunharam junto à Comissão da Verdade, a sua morte por tortura nas dependências do DOI-Codi/SP.
“A tortura dói profundamente. É uma ferida que nunca cicatriza e que vai além de seu próprio corpo. Ela atinge todos os corpos, da família até o conjunto da sociedade. Nossos filhos, gerações e gerações são afetados. Por isso é considerado crime de lesa humanidade”.
Em 1975, começa o movimento pró-Anistia no Brasil. Mas a Lei da Anistia só foi aprovada em 28 de agosto de 1979, a lei nº 6.683, que concedeu anistia a todos que cometeram crimes políticos ou eleitorais e àqueles que sofreram restrições em seus direitos políticos em virtude dos Atos Institucionais (AI) e Complementares, entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Entretanto, a Lei excluiu todos aqueles que foram condenados por crime de terrorismo, atentado pessoal ou sequestro. “Reivindicamos anistia ampla, geral e irrestrita para todos os que tinham sido presos, inclusive os que tinham participado da luta armada ou sido enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Neste primeiro momento, fui anistiada, junto com outras oito mulheres, por ser da “imprensa”, mas minha irmã Criméia Alice Schmidt de Almeida, que havia participado da guerrilha no Araguaia, só conseguiu a anistia anos depois. Ou seja, nunca se reivindicou anistiar torturadores, mas a lei perdoou os crimes realizados por membros das forças armadas durante o regime militar”.
Até hoje, e em função dos crimes cometidos durante o Governo Bolsonaro, o debate sobre Anistia voltou a ganhar a imprensa e as mídias sociais. O debate gira em torno de que o país precisa passar a limpo suas dores e suas tragédias, responsabilizando pela Lei todos aqueles que cometeram crimes como tortura, assassinato, ocultamento de corpos e genocídio.
Direito à memória – a luta contra o esquecimento
Com a Comissão Nacional da Verdade (criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012), os crimes de violações aos direitos humanos praticados por “agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado brasileiro”, começaram a ser investigados.
Amelinha Teles faz parte da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos pela Ditadura Militar. Durante o Governo de Bolsonaro, “um defensor de torturador”, a Comissão foi desativada. “Teremos uma audiência com o atual Ministro dos Direitos Humanos, Dr. Silvio Almeida, para reiniciar os trabalhos na Comissão, reiterando o nosso trabalho inicial, lembrando que o Estado Brasileiro já foi condenado pelos fatos ocorridos na ditadura militar, mas ainda não respondeu legalmente a todos crimes”.
“Existem oficialmente 436 pessoas desaparecidas, mas deve ter muito mais. Em Perus ainda deve ter gente, assim como no Araguaia. Sabemos de mais de 8 mil indígenas desaparecidos”.
Em 1990, no Cemitério Dom Bosco, no bairro periférico de São Paulo, foi descoberta uma vala clandestina com 1049 ossadas. Entre elas estavam os restos mortais de Carlos Danielli e Alexandre Vannuchi. O caso, de grande repercussão foi acompanhado por repórteres nacionais e estrangeiros. Conhecido como “cemitério da ditadura” foram enterrados ali, como indigentes, muitas pessoas assassinadas pela polícia e por paramilitares, cujas rondas noturnas foram batizadas de “esquadrão da morte”.
Pessoalmente, a família Teles conseguiu justiça, não só para eles, mas para vários companheiros e companheiras. Ustra, que tem cerca de 50 mortes e centenas de torturados nas suas costas, foi considerado oficialmente torturador pelo Estado Brasileiro, em três instâncias. Em março de 2013, Amelinha prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade, afirmando ter sido vítima de variadas torturas, que envolveram choques elétricos e violências sexuais. Em dezembro de 2014, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou Ustra responsável pelas torturas sofridas por ela, seu marido, seus dois filhos e sua irmã Criméia Alice Schmidt de Almeida, dentro do DOI-Codi.
“Ele recorreu em 2008, quando perdeu a primeira vez. Perdeu de novo em 2012. Em 2014, no STJ, perdeu pela terceira vez. Acho que só não recorreu ao STF porque morreu em 2015. Morreu um torturador”.
Não estou mais sozinha numa cela
Amelinha protagonizou uma cena, no tempo em que estava presa, que foi relembrada por Amaury Monteiro Júnior, num texto comemorativo ao Dia Internacional da Mulher neste site. Essa história o marcou. Foi uma ação possível, mas que fez diferença no mês de março, em tempos de cárcere.
“Fiquei feliz e totalmente surpresa que o Amaury tenha lembrado da história do Dia Internacional da Mulher, quando estávamos presos. História que aconteceu há 50 anos. Amaury estava na cela com meu marido César Augusto Teles (1944-2015). Estava isolada numa cela. Na época, ninguém sabia muito que em março se comemorava O Dia Internacional da Mulher. Nem a esquerda. Sozinha, a gente tinha que inventar alguma coisa para causar. Por exemplo, eu falava sozinha e meu carcereiro me perguntou se eu estava ficando maluca. Eu estava incomunicável, mas eles não podiam me deixar incomunicável comigo mesma. Escrevi no papel – Viva o Dia Internacional da Mulher – e o papel foi passando de cela em cela. Também gritei bem alto e muitos responderam: Vivaaa!!!”
“Naquela época, nem a esquerda sabia que esse dia existia e, sejamos francos, nem davam importância para a luta das mulheres ou pela importância do papel das mulheres na luta contra o fascismo. E acho que por ter dito Dia Internacional, o delegado me ameaçou abrir processo por crime contra Segurança Nacional, o qual já respondia por outros motivos. Não deu em nada, claro.”
Mas hoje “não estou mais sozinha dentro de uma cela”. Hoje milhões estão comigo. A luta vale a pena”.
Lançamento de novo livro
Amelinha desenvolve um trabalho de militância feminista histórica. É diretora da União de Mulheres de São Paulo, coordenadora do Projeto Promotoras Legais Populares, integra o Conselho Consultivo do Centro Dandara e é autora de diversos livros sobre o tema, como “Breve História do Feminismo no Brasil”, “O que é Violência contra a Mulher?” e “O que são direitos humanos das mulheres?”.
Em 15 de abril, mais um livro será lançado: “Feminismos: ações e histórias de mulheres”, pela Editora Alameda com pré-venda disponível no site.
“Fui estudar direito para entender as Leis e saber usá-las a favor dos pobres e mulheres. Este livro pretende falar de lutas feministas para os jovens, os conceitos e a história internacional dos movimentos. E claro, a luta aqui no Brasil. Apresento os direitos femininos que estão na Constituição de 1988. Os dados no Brasil são alarmantes, por exemplo, cerca de 20 mil meninas de até 14 anos se tornam mães, por ano. Muitas engravidam por estupro, o que daria a elas o direito ao aborto. Na prática, essas meninas não sabem que têm esse direito garantido ou o Estado não fornece as condições necessárias”.
No livro, também estão contadas 15 histórias de mulheres como Chiquinha Gonzaga, Benedita da Silva, Nísia Floresta, Dilma Rousseff entre outras.
“Neste livro, Amelinha imprime a sua assinatura de compromisso de vida pela formação e conscientização de mulheres, meninas e de toda sociedade em relação ao reconhecimento das violências e à disponibilidade de ferramentas para enfrentá-las. Trata-se de uma importantíssima obra, porque também pode ser entendida como um documento histórico por trazer o resultado das lutas das mulheres, algo que as gerações mais novas precisam saber até para que possam utilizar essas ferramentas de transformação nos dias atuais” Djamila Ribeiro
“Nós, mulheres sempre estivemos na luta. Historicamente, o patriarcado deu vazão a várias formas de preconceito como o racismo, machismo e o sexismo. A sociedade ocidental foi formada por homens brancos, proprietários, ricos. O capitalismo precisa dessa formação para sobreviver. A luta das mulheres é imensa, assim como dos pretos e LGBTQI+, ou todos os diferentes dos homens brancos ricos. Com Bolsonaro, houve um retrocesso enorme, a começar com a escolha da Ministra Damares, das meninas vestidas de rosa. Como esquecer frases ou palavras do ex-presidente – Não te estupro, porque você é feia; quantas arrobas valem os negros; Imbrochável. Ou seja, o discurso machista somado à liberação das armas gerou uma violência enorme, principalmente nos casos de feminicídios”.
A luta é diária: empoderar é educar e informar
Para Amelinha, a solução para a diminuir a violência contras as mulheres passa por empoderá-las através da educação e de informações sobre seus direitos. “Essa é a nossa bandeira. Só com educação e informação sobre seus direitos, as mulheres terão condições de se defenderem. Prevenção mais do que punição. Afinal, a impunidade é clara, já que Leis são feitas e julgadas por homens brancos”.
São inúmeras as ações em que Amelinha atuou e ainda muitas outras para acontecer. A luta é todo dia. Só para citar duas, 80% das reivindicações das mulheres para ampliar direitos civis, econômicos e sociais que constam na Constituição 88 foi conquistada graças a atuação de Amelinha. Desde 1994, do projeto Promotoras Legais Populares (PLPs) que dá formação legal para mulheres e as ensina a valorizar o direito, ampliá-lo e aprender o caminho de acesso à justiça. “Saí da cadeia sem eira e nem beira e muitos me ajudaram. Eu sobrevivi graças a solidariedade do povo. Muitos nem sei quem são. O povo brasileiro existe, resiste por sua solidariedade”.