MEMÓRIAS DA PRISÃO APÓS O GOLPE NO CHILE – ÊNIO BUCCHIONI

Memórias da prisão após o golpe no Chile
Publicado originalmente em: 13/09/2016 11h04

Operários presos no Estádio Nacional do Chile.


Trechos do texto escrito por Enio Bucchioni em 13 de setembro de 2016


Saí do quarto da pensão onde eu morava escoltado por vários militares do exército chileno. Poucos minutos antes ouvi alguns tiros no quintal da casa, para onde Augusto, jovem burocrata da ala direita do PS chileno que ocupava um quarto vizinho ao meu, interventor numa fábrica sob jurisdição do governo Allende, havia sido levado. Pensei que o haviam fuzilado ali mesmo e eu seria o próximo.


Era o dia 13 de setembro de 1973, cerca de 7h da manhã. Nessa madrugada, houve um grande tiroteio no bairro e pela manhã os militares entraram em todas as casas em busca dos, possivelmente, franco-atiradores. O toque de recolher decretado por Pinochet, proibição de todo cidadão de sair de casa, vigorava desde o dia 11, começo do golpe, até 12h do dia 13. Até hoje não sei se atiraram no Augusto com balas de festim ou se atiraram para o alto.


Ao sair para a rua, um militar me mandou correr. Não o fiz. Desde o Brasil sabia que correr significava levar um tiro nas costas durante a pretensa ‘fuga’, tantas vezes isso ocorreu por aqui. O soldado foi me empurrando para dentro de um ônibus e ficamos, Augusto e eu, deitados no chão do veículo. No entanto, esse milico, por mero prazer pessoal, passou levemente a ponta da sua baioneta sobre minha perna direita, abrindo um pequeno corte superficial de uns dois centímetros.


O dia 11 de setembro de 1973.


Eu vivia com uma companheira diretora da UNE chilena, militante do MAPU, Movimiento de Acción Popular Unitária, uma pequena organização socialista com 10 mil militantes, mesmo número que o MIR. Lembremo-nos que o PC tinha 200 mil filiados e, ou militantes, o PS, partido muito mais à esquerda que o PC, 400 mil. Tudo isso num país 20 vezes menor em população que o Brasil de 2016.


Acordamos a tempo de escutar o último discurso do presidente Allende pelo rádio, onde ele não chama a população, os trabalhadores e a juventude a reagirem frente ao golpe, mas sim afirma que foi traído pelos comandantes militares apesar dele sempre ter cumprido com a Constituição e com as leis vigentes e que a História o julgará e aos golpistas. Lembremos que Pinochet foi seu ministro do exército nos últimos meses.


Fomos para o Instituto Pedagógico da Universidade do Chile onde eu trabalhava e estudava no Departamento de Matemática. Com algumas centenas de estudantes seguimos para uma grande obra da construção civil ali por perto onde trabalhavam centenas de operários. As lideranças do governo ali presentes nos disseram que viriam armas para a resistência ao golpe. Pinochet decretou o Toque de Recolher a partir das 17h desse dia 11, ou seja, quem fosse apanhado nas ruas seria imediatamente preso.


Eu nunca havia aprendido a atirar, nem Monica. Mas, há momentos na vida onde os princípios marxistas imperam sobre nossas atos. Ficaria ao lado daquela multidão proletária e juvenil para o que desse e viesse, pois sabia que o golpe era contra a minha classe social e eu estava ali junto a ela, apesar de nunca haver apoiado integralmente o governo da Unidade Popular . No entanto, não era momento de me omitir, nem de fugir. Aprenderia rapidamente a atirar, pensei.


Esperamos pelas armas até meia hora antes do toque de recolher. As armas não chegaram até hoje, nem lá, nem em nenhum rincão do Chile.


À noite, lá na pensão, conversando com Monica, concluí que, se houvesse resistência, seria dispersa e pontual.


Do dia 13 de setembro até as vésperas do Natal de 1973

Fui levado a uma delegacia e ao Ginásio do Chile, que era uma praça de esportes fechada, algo parecido com o ginásio do Ibirapuera em SP. A parte interna desse local já estava lotada por alguns milhares de prisioneiros. Assim era porque no decorrer do Toque de Recolher os militares com metralhadoras, carros tanque, helicópteros e todo tipo de armamento entravam nas fábricas, onde os operários esperavam pela resistência que não houve, e os prendiam às centenas de uma só vez.


Eu fiquei na parte acima que contornava esse ginásio, numa ampla sala, ao lado de umas cem pessoas. Vira e mexe escutava tiros vindo do interior do ginásio. Victor Jara, um dos cantores mais famosos daquela época, foi assassinado na frente de todos. Foi nesse local que me encontrei com o amigo e companheiro gaúcho Dirceu Messias, cuja história, a do Anel Azul, é contada em outro texto e vídeo .


Passados uns poucos dias o ginásio ficou pequeno e fomos levados para o Estádio Nacional, o maior campo de futebol do Chile com capacidade para 47 mil pessoas, ficando ele parcialmente lotado.


A cada momento chegavam centenas de operários. Eles diziam que eram de tal ou qual fábrica, ou seja, ali era o campo de concentração onde os gorilas golpistas aprisionaram a vanguarda da classe operária chilena de Santiago. Era perfeitamente nítido o caráter de classe do golpe.


Havia também alguns milhares de estrangeiros exilados, entre os quais, algumas centenas de brasileiros.


Nos primeiros dias a fome foi se instalando entre todos os detidos. Ficamos algum tempo sem nada comer. Dias depois nos deram café com leite e um pão pela manhã e ao anoitecer. Às vezes nem isso. Assim, no local onde fiquei tive a companhia de mais seis brasileiros exilados. Fiquei responsável para pegar a comida junto aos militares do setor. Um dia o soldado que distribuía a comida me deu,sem querer, um pãozinho francês a mais. A fome era tanta que nos obrigou a discutir e a deliberar o que faríamos com ele. Um dos brasileiros propôs que o pãozinho extra fosse distribuído na sorte. Argumentei que devíamos dividir o pãozinho em sete pedaços iguais. Minha proposta foi vencedora e me coube a dificílima tarefa de cortar com as mãos o pãozinho em sete pedaços iguais.


Aos poucos começaram a nos servir um almoço bem simplório, mas que nos parecia fantástico: comida salgada. Nunca na vida me pareceu tão gostoso um prato de lentilhas.


Fiquei talvez uns 15 dias sem fumar. Foi a única vez em minha vida adulta que parei de fumar diariamente, até que um operário chileno inventou um dos cigarros mais maravilhoso que já traguei. Ele pegou várias cascas secas de banana jogadas ao chão pelas torcidas de futebol em jogos passados e com a ajuda de um canivete retirou toda a parte branca da casca. Parecia uma farinha. Daí então ele pegou restos de jornal velho deixados no chão ,fez uma espécie de funil, colocando essa ‘farinha ‘ em seu interior. Que delícia saborear novamente um belo cigarro!


O encapuçado e os torturadores brasileiros.


Não sei mais quanto tempo passou até um dos dias mais tensos vividos pelos milhares de prisioneiros. Veio uma ordem dos militares para que todos ficassem em pé. De repente apareceu um cara com um capuz preto na cabeça nas margens do alambrado que separa o público do campo. Ele foi andando muito lentamente ao redor das dimensões do campo e com o dedo em riste apontava para algum prisioneiro. Em seguida, algum soldado retirava a pessoa apontada do nosso convívio e o encapuçado voltava a andar. Era um dedo-duro,um infiltrado. Seria alguém camuflado dentro de algum partido de esquerda? Seria algum brasileiro, como depois soubemos que havia infiltração entre os exilados? Pensávamos que quem fosse ‘dedado’ provavelmente seria torturado ou fuzilado. Quando ele passou bem perto onde estava, eu quase não mais respirava.


Nestes dias fiquei sabendo da quase certa morte do meu grande amigo e companheiro do Ponto de Partida, o Tulio Quintiliano. Também acabou morrendo o Wanio José de Mattos, oficial militar brasileiro que havia aderido à guerrilha no Brasil e que foi detido conosco no Estádio Nacional. Wanio sofreu fortíssima prisão de ventre e, ao não receber tratamento médico, acabou por falecer.


Quando chegamos a este estádio, fomos alvo de um interrogatório ultra sumário. Nome, endereço, profissão, o que fazia no Chile. Um ou outro levaram algumas porradas. Lembro-me de um operário chileno que, ao ser espancado, era interpelado por um milico: “Diga a verdade, você é do MIR!” O coitado do detido, respondia aos berros: “No soy del MIR. Soy del Partido Socialista”.


Ao final desse interrogatório, cada estrangeiro era classificado nas seguintes categorias: liberdade condicional; expulsão do país; ir para Justiça Militar. Quase todos foram para a segunda categoria, expulsão do país, já que o golpe repercutira no mundo inteiro. Houve uma imensa solidariedade internacional, bem como, ao não haver resistência dos partidos reformistas, a situação ficou bastante confortável para os golpistas. Assim, não havia perigo que os estrangeiros exilados pudessem engrossar um movimento de resistência. A solução era expulsá-los do país, para bem longe, já que nenhum governo latino-americano aceitou nossa entrada em seu país. Apenas alguns poucos países europeus nos acolheram.


No entanto, eu fiquei sob Justiça Militar. Não sabia o porquê. Quase todos os brasileiros foram expulsos.


Após o encapuçado, houve um outro momento de grande tensão entre nós. Nesse momento os militares já tinham colocado os brasileiros detidos todos juntos num determinado local do Estádio. O mesmo com os uruguaios, argentinos e demais nacionalidades.


É que começou um interrogatório particular , pois a Ditadura brasileira enviou uma equipe especial de torturadores e interrogadores para transmitir ‘know how’ à repressão chilena. Seis companheiros foram chamados e identificaram os policiais brasileiros. O caso foi rapidamente transmitido à Cruz Vermelha Internacional que já atuava no Estádio e o interrogatório foi interrompido. No entanto, a equipe repressiva brasileira permaneceu no Chile por não sei quanto mais tempo.


Alguns momentos inesquecíveis

Lúcio Flávio, um dos banidos pela Ditadura, um belo dia teve uma ideia brilhante. Convenceu a todos os brasileiros detidos que devíamos cantar, pois o canto seria a forma alegre e confiante de enfrentar a prisão e os militares presentes no Estádio. Ele escolheu a lindíssima música do desfile da escola de samba do Império Serrano de 1969, a “Heróis da Liberdade’. Centenas de vozes a entoaram com força total nos lábios e nos corações.


As outras nacionalidades entenderam o nosso recado e cada uma delas cantou a sua música. Lembro-me dos bolivianos cantando “El Condor Pasa”. Até hoje, passados 43 anos, me dá arrepios ao lembrar este episódio. Devo confessar, caro leitor, que várias lágrimas espalham-se pelo meu rosto enquanto escrevo este episódio e vejo o condor livre, voando pelos Andes, ao escutar nesse momento essa música no youtube.


Fiz imensa amizade com os Otto Brokes e Ivens Marcheti. Nos quase três meses que ficamos detidos, o Estádio foi se esvaziando, os estrangeiros expulsos, e o chilenos removidos para outras prisões ou liberados. Eu tinha apenas 25 anos. Otto e Ivens eram cerca de 15 anos mais velhos. Sobre o meu amigo Otto, eu o reencontrei dois anos mais tarde em Portugal da Revolução dos Cravos. Logo depois ele partiu para Angola para lutar ao lado dos guerrilheiros do MPLA . Ivens, barbaramente torturado no Brasil, foi banido ao ser libertado em troca do embaixador norte-americano sequestrado no Brasil em 1969 pela guerrilha. Conversávamos sobre tudo o que diz respeito à vida e à militância em prol do socialismo. Há amizades que são infinitas, que nos marcam para sempre.


Nas últimas semanas de prisão, ficamos apenas em cinco brasileiros detidos. O Estádio estava quase todo esvaziado. Otto e eu chegamos a pensar na hipótese de que nós reviveríamos o famoso caso de Sacco e Vanzetti, ativistas anarquistas inocentes mas condenados à morte e eletrocutados nos EUA na década de 20 para servirem de lição para outros militantes.


Na primeira ou segunda semana de dezembro saí do Estádio e fui parar na embaixada sueca. Em vésperas do Natal, junto com 48 outros latino-americanos, segui para o refúgio na França.


Durante a viagem tinha um sentimento totalmente contraditório. Estava imensamente feliz por sair da prisão, por estar vivo. Por outro lado sentia-me completamente triste pela morte do Tulio, que era quatro anos mais velho e foi um dos maiores amigos que tive na vida. A tristeza também se devia ao fato dos trabalhadores e a juventude chilena serem massacrados impiedosamente por nossos inimigos de classe, quando era plenamente possível o inverso, ou seja, a expropriação da burguesia.


Essa viagem significava também a terceira derrota consecutiva da esquerda brasileira, depois de 1964 e das guerrilhas de 69 em diante. A América Latina iria ser tomada quase completamente por ditaduras pró-imperialistas. Eu estava indo para outro continente distante e forçado a ir para um outro país contra a minha vontade. Também não sabia o que tinha ocorrido com os demais companheiros do Ponto de Partida, grupo político inspirado por Mario Pedrosa e fundado por Tulio . Tinha em minha alma o sabor de uma grande derrota. Me sentia apenas como um ser sobrevivente.

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Ênio Bucchioni trabalhou como jornalista da revista Versus, profissional político de uma das correntes fundadoras do PT, deu aulas de matemática, participou de uma das correntes que fundaram o PSOL em 2003/2004, escreveu um livro sobre a guerra China X Vietnã, foi diretor de base da CUT regional do ABC indicado pela diretoria da Apeoesp de Diadema (sindicato dos professores da rede pública estadual) e tantas outras coisas desde que voltou do exílio.

A ARMADILHA – COMO SAIR DA ARMADILHA? (final)

Jean Marc von der Weid, abril de 2023

Quando comecei a escrever esta análise prospectiva do governo Lula não pensei muito no título que adotei. Logo alguns críticos destes escritos apontaram que a palavra armadilha dá a entender uma ação deliberada de alguém ou alguéns. Devo esclarecer que a armadilha, arapuca, arataca, mundéu ou qualquer outro sinônimo não implica, no meu ver, numa conspiração de quem quer que seja. Os diferentes aspectos deste enredo têm origens estruturais ou conjunturais e são parte de uma crise sistêmica do capitalismo internacional e de sua expressão nativa. Esta crise se manifesta em vários aspectos, econômicos, ambientais, sociais, ideológicos e políticos, que eu procurei abordar nos dez artigos que precedem o atual.

O que estes artigos apontam é que estes aspectos da crise estão se combinando para compor o emaranhado de condicionalidades que já estão travando o governo Lula e ameaçando as esperanças surgidas com a derrota do energúmeno nas eleições. Vamos agora ver os cenários possíveis e as melhores possibilidades de se romper a armadilha.

Mas antes de entrar a fundo na matéria anunciada precisamos lembrar o que pode acontecer no caso de não se conseguir romper a armadilha.

Se o governo Lula não der conta de promover um desenvolvimento significativo da economia com caráter inclusivo, não vai haver Bolsa Família, Minha Casa/Minha Vida, Farmácia Popular ou qualquer outro, que compense o desemprego, subemprego, baixa renda e carestia que devem acompanhar um marasmo econômico prolongado. Sem aumento na renda, nos índices de emprego, no controle da inflação, sobretudo de alimentos e no acesso a bens e serviços básicos, não só vai ser difícil cativar o voto capturado por Bolsonaro entre os antilulistas ou antipetistas, como vai ser difícil manter os votos antibolsonaristas do centro e da direita democrática. Esta situação nos levaria para uma eleição em 2026 com chances de uma candidatura da direita, provavelmente sem Bolsonaro, mas viável eleitoralmente.

Uma situação de descontrole econômico poderia ser ainda pior, por gerar inflação, com a consequente perda de renda. Os programas sociais estão subjudice neste congresso de direita e podem ser cortados se interessar o jogo político antigoverno. Uma perda de sustentação popular de Lula e de seu governo pode nos conduzir de volta à situação vivida por Dilma Rousseff, com índices de aprovação caindo para menos de 10%. Esta situação aponta para um repeteco do golpe de 2016. Mesmo com Lula sendo de outro estofo político que Dilma, a possibilidade é bem real, dada a composição do Congresso.

Em outras palavras, romper a armadilha é vital para o futuro da democracia e da república. Se perdermos as apostas deste quatriênio caminharemos para um desastre renovado e prolongado que poderá arruinar o país de forma permanente.

Isto dito, vamos analisar os caminhos possíveis para desfazer as amarras que travam o governo Lula.

A primeira questão a resolver é a da definição dos objetivos que o governo deve adotar para garantir seu sucesso. Até agora, quer na campanha eleitoral quer nos primeiros 100 dias, não temos um plano claro de governo. As promessas foram muitas e, como sempre, a maior parte não poderá ser realizada. Estamos assistindo a uma sucessão de iniciativas que aparecem desconexas e sem eixos prioritários. O governo reclama da falta de recursos e se bate contra o teto de gastos, indicando que pretende gastar mais do que arrecada. No entanto, o modelo proposto por Haddad como arcabouço fiscal não garante esta disponibilidade de verbas para investimentos governamentais. Mesmo este moderadíssimo projeto desagradou o mercado e a mídia convencional e arrisca de ser trucidado no Congresso. Por outro lado, a ala esquerda do governo ataca a proposta como sendo uma manutenção do projeto neoliberal de Estado mínimo. É verdade, mas o que a esquerda não parece compreender é que a correlação de forças, no Congresso e nas classes dominantes, não vai permitir nada mais radical, por mais que esta radicalidade seja uma necessidade.

Como dar a volta neste nó? A esquerda fala em uma mobilização permanente da sociedade civil organizada para pressionar o Congresso em apoio ao governo. No entanto, o governo não explicitou como pretende usar as verbas pelas quais está se batendo. Sem um programa muito claro, enxuto e muito colado nas necessidades básicas da população fica difícil fazer esta “mobilização permanente”. A capacidade de convocatória da ala esquerda ficou bastante diminuída nos últimos 10 anos e hoje ela é muito dependente dos movimentos identitários, cuja agenda não é, prioritariamente, econômica. Não estou dizendo que as reivindicações de negros, mulheres, LGBTQIA+ e indígenas não sejam importantes, apenas que a luta por esses direitos não têm o mesmo foco da luta por um programa de desenvolvimento sustentável e inclusivo. É preciso lembrar que há uma enorme distância entre as massas que a esquerda conseguiu mobilizar contra o bolsonarismo e seus atentados contra a democracia, que chegou a 700 mil no auge de 2021, e a força de mobilização que o Lula mostrou em sua campanha eleitoral, quando somou dez vezes este número.

Podemos supor que Lula adote uma postura de mobilização permanente, tal como fez Bolsonaro ao longo do seu governo, mas há um risco alto nesta aposta. Mesmo com uma proposta programática clara e impactante, que ainda não apareceu, Lula teria que adotar uma postura de combate para a qual ele não tem sustentação no Congresso nem na mídia. Bolsonaro não tinha a mídia, mas tinha o Congresso a partir do momento em que se entregou ao Centrão. Com isso, ele neutralizou qualquer ameaça de impeachment e Lula não vai ter esta salvaguarda com Lira na presidência da Câmara. Por outro lado, a direita mostrou uma capacidade de convocatória que, embora retraída neste momento, está longe de ser desprezível. E o potencial de enfrentamentos entre manifestantes pró e contra o governo nas manifestações de rua é evidente. Violência política é algo que a direita está pronta para usar, com ou sem levar suas bases para as ruas.

Governar vai ser um exercício de malabarismos em busca de conquistar votos no Congresso para passar os projetos básicos de interesse do governo. O primeiro deles vai ser o “arcabouço fiscal”, mas o mais importante será a reforma da previdência. Sem uma radicalidade maior neste projeto, eliminando os mais de 400 bilhões de reais por ano em isenções fiscais, adotando uma forte redução nos impostos indiretos e uma progressiva taxação sobre os mais ricos não vai haver dinheiro para os programas de promoção do desenvolvimento ou para os programas sociais. Esta é uma luta em que vai ser fundamental mostrar para as grandes massas que o sistema atual é injusto e que beneficia quem tem mais dinheiro. E esta luta vai precisar de estar ancorada na apresentação de um plano concreto sobre o que o governo pretende fazer com o dinheiro arrecadado. Acrescente-se a isso que esta reforma, mesmo que aprovada ainda este ano, não terá impacto na arrecadação antes de 2025 ou 2026 e pode não dar tempo para o governo usar os recursos para os seus programas.

Mobilizar as massas para pressionar o Congresso vai ser crucial, até porque não existem outros meios de ganhar o apoio nestas casas recheadas de direitistas e bolsonaristas. O governo parece confiar nas suas concessões aos parlamentares e partidos da direita para conquistar os votos necessários, mas o jogo é para lá de difícil, até porque uma reforma tributária progressiva que taxe mais os mais ricos afeta as fortunas dos próprios congressistas. Seria o caso de isentá-los todos da nova taxação? Se for esse o preço me parece que é o caso de pagá-lo, por mais que esta medida seja imoral e impopular.

Outra pauta importante para o governo Lula é a ambiental. É verdade que ela não tem apelo eleitoral amplo, mas a urgência e a emergência dos temas ambientais cobram medidas radicais, sobretudo no controle do desmatamento e das queimadas, com foco na Amazônia e no Cerrado. É uma pauta que pode ter apoio na mídia convencional e em parte da classe dominante, mas que será ferozmente antagonizada pelo agronegócio, e este tem influencia pesada nas duas casas do Congresso. É uma pauta com respaldo internacional, inclusive financeiro, mas não pode ser tratada com luvas de pelica porque o tempo corre e o processo de destruição continua em curso, depois do show midiático da intervenção em terras Yanomami. Os países europeus acabam de aprovar uma legislação vetando importações de produtos oriundos de áreas desmatadas e isto vai favorecer uma campanha ampla no país.

As medidas necessárias para pôr em cheque o desmatamento e as queimadas não necessitam de apoio no Congresso, a não ser que a bancada ruralista aposte em mudar a legislação para algo ainda mais favorável aos seus interesses. Mas não estamos assistindo a um esforço intensificado de controle nos biomas mais afetados e os índices de destruição neste governo continuam nos mesmos níveis dos tempos de Bolsonaro. Por que será? Estará havendo alguma negociação com os ruralistas? Lula vai combater as medidas de controle de importações dos europeus? Se o fizer vai perder todo o suporte internacional que adquiriu com suas declarações radicais em Sharm-el-Sheik. E como ele já não está com esta bola toda depois de trocar os pés pelas mãos, metendo-se no cipoal da guerra da Ucrânia, ele arrisca de ficar isolado tão depressa quanto foi adulado logo após as eleições.

Para completar estas especulações sobre o que deve ser essencial nas iniciativas do governo, creio que é preciso apontar para a necessidade de foco, e de um foco assumido pelo governo. O programa que estou reclamando tem que ser apresentado e muita coisa importante vai ficar fora das prioridades. Isto vai ser refletir na agenda identitária e em outras importantes agendas como a reforma agrária. O governo terá que ser muito incisivo nas suas iniciativas para não dar espaço para as ofensivas da direita, que vai tentar polarizar politicamente com sua própria agenda, em particular a de costumes que se choca diretamente com a agenda identitária. No quadro atual da correlação de forças não podemos pretender avanços nestas pautas e já vai ser um enorme ganho impedir retrocessos. O importante é não deixar que a ofensiva da direita ganhe corpo e, para isso, as atenções terão que ser voltadas para as propostas prioritárias do governo.

Não cabe aqui detalhar o que eu acho que deveria ser o programa de desenvolvimento do governo. O eixo deveria ser o investimento no atendimento das necessidades básicas da população, com uma orientação clara para formas sustentáveis de produção. Em particular, me parece que o tema da alimentação deveria adquirir uma consistência maior, saindo do lado “bolsas” para o lado produção e garantia de preços acessíveis para os mais pobres. Já tratei deste assunto em outros artigos e não vou repetir os argumentos e propostas.

Para completar, fica uma recomendação para a militância da esquerda e dos movimentos da sociedade civil. Temos que romper a bolha em que nos encerramos há tempos e buscar discutir as propostas programáticas prioritárias com a população. Algo assim foi feito durante o segundo turno, com grupos de militantes se reunindo para ir às ruas conversar com o povo. Façamos isso de forma orgânica e permanente. Não vai ter efeito imediato no jogo político, mas a longo prazo não poderemos escapar de cumprir este papel que sempre foi o nosso na sociedade.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta 

A ARMADILHA – A QUESTÃO DA SEGURANÇA – p.10

Jean Marc von der Weid, março de 2023

É frequente, na política brasileira, levantarem-se fantasmas que anunciariam o nosso futuro. Os protótipos negativos mais comuns são os nossos vizinhos, Venezuela e Argentina. Ou mais distantes, como Cuba e Nicarágua. Os críticos da direita sempre acusam a esquerda de querer levar o Brasil para estes modelos vistos como infames ou fracassados. Entretanto, o modelo para o qual o Brasil parece se dirigir é a Colômbia de alguns anos atrás, quando o narcotráfico mandava no país. Por mais de uma década, os cartéis controlavam tudo: polícia, exército, judiciário, partidos, economia. Foi um enorme esforço, nacional e internacional, para trazer de volta o país a uma situação de relativa normalidade.

A situação da segurança no Brasil é para lá de dramática. A força policial é enorme, com mais de 500 mil PMs, sem falar dos agentes da polícia civil. Entretanto, o crime organizado controla territórios impressionantes, sendo os exemplos mais chocantes o domínio de mais da metade da área do município do Rio de Janeiro, a segunda cidade do país, e de amplas áreas de garimpo na Amazônia. É menos conhecido do público o fato de que muitos dos agricultores familiares do nordeste já não habitam em residências nas suas áreas produtivas, indo morar nas “pontas de rua” de aldeias e vilas, por medo da violência da bandidagem.

Com todo este aparato policial, o crime grassa descontrolado em todo o país. Há uma guerra digna dos números daquela travada pelos americanos no Vietnã, com dezenas de milhares de vítimas, muitas entre os próprios policiais, mas muitas mais entre a população, sobretudo nos bairros mais pobres, como as favelas do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Morrem muitos bandidos, mas morrem mais inocentes moradores. As vítimas são sobretudo os pretos e os pardos, os jovens e os pobres.

A polícia está infiltrada e corrompida pelo crime organizado, além de ter se politizado irregularmente ao longo das últimas décadas. O sindicalismo policial provoca enfrentamentos com os governos civis que deviam controlá-lo, com inacreditáveis greves que levam a população a um estado de terror, totalmente vulnerável à ação das organizações criminosas. Os presídios, com uma população carcerária classificada entre as maiores do mundo, estão sob controle dos Comandos (PCC, CV, AdA, outros), que fazem deles espaço de recrutamento e formação de quadrilhas. Mesmo naqueles de segurança máxima, os dirigentes das quadrilhas atuam sem peias para comandar seus “soldados” do lado de fora. Acontecimentos como as duas semanas de ataques de criminosos a dezenas de cidades no Rio Grande do Norte têm ocorrido com frequência crescente.

E quando não são as gangues, os controladores de território são as milícias, formadas por ex-policiais. Uma ou outra destas formas de controle criminoso implica em se ter espaços importantes territórios urbanos ou rurais sem a presença do Estado. O crime organizado impede que serviços públicos sejam remunerados, já que ele intercepta e desvia os pagamentos por água, luz, internet, outros. Toda a economia destes territórios está sujeita a uma taxação de “proteção”. Empresas como a Light, no Rio de Janeiro, cobram mais caro dos usuários que residem fora das áreas de controle de gangues ou de milícias, para compensar as perdas.

O poder de fogo destes personagens só faz crescer, devido às medidas tomadas pelo governo Bolsonaro liberando a posse e porte de armas, inclusive as que eram, até este governo, de uso exclusivo das FFAA. Esta política levou ao crescimento vertiginoso do número de supostos caçadores, atiradores e colecionadores (os “CAC”), que hoje já são mais de 700 mil. Não só esta enorme ampliação da venda de armas facilitou o acesso da bandidagem a mais e mais potentes armamentos e munições como também colocou nas mãos de fanáticos bolsonaristas um poder de fogo extremamente perigoso para o futuro da democracia.

A polícia militar é um foco de ativistas e seguidores de Bolsonaro, e isto também é uma ameaça para a democracia. Pesquisas realizadas durante o governo passado indicaram que perto de 66% dos policiais militares eram bolsonaristas, sendo que as lideranças (que operam com mais poder do que os oficiais) foram identificadas como ativistas apoiando os arreganhos antidemocráticos do ex-presidente.

Não acredito que este contingente seja capaz de tomar a iniciativa de um golpe, tal como sucedeu na Bolívia, mas ele pode criar inúmeros problemas para o governo Lula. Como estão fora do controle da esfera federal e subordinados a governadores (em sua grande maioria de direita e bolsonaristas), as PMs podem provocar grandes traumas políticos pela repressão violenta dos movimentos sociais. O governo federal pode intervir, como o fez em Brasília com sucesso, no caso da intentona de 8 de janeiro. Mas estas intervenções são recursos extremos e podem ser contestadas pelos governadores e pela justiça. Os limites da ação federal podem ser bem maiores em casos de repressão, por exemplo, ao movimento dos sem-terra.

Além de não propiciarem segurança para a população, os PMs são vistos pelos mais pobres, pretos e jovens como uma ameaça constante. E eles tem uma pauta política que Bolsonaro usou para ganhar adeptos. Ele não conseguiu tudo o que queria para beneficiar este público, como por exemplo o iníquo “excludente de ilicitude”. Por outro lado, eles estão em guerra contra o uso de câmeras que filmem as suas ações. E não vão deixar de pressionar por um maior laxismo no controle de sua atividades. Com governadores de direita na maioria dos Estados e uma base de deputados e senadores da chamada “bancada da bala”, os riscos de enfrentamentos, no Congresso e nas ruas, vão ser permanentes.

Uma prova dos nove vai ocorrer na aplicação de medidas de controle das áreas de garimpo ilegal, assim como as áreas de desmatamento ilegal. É claro que este esforço não pode ser todo feito apenas por agentes federais. Veremos qual vai ser o comportamento das PMs se e quando forem convocadas a agir na Amazônia.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundado da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

A ARMADILHA – A QUESTÃO DA CORRUPÇÃO (parte 9)

Jean Marc von der Weid, março de 2023

Não é segredo para ninguém o peso deste tema nos processos políticos desde a redemocratização. No tempo da ditadura, a corrupção comia solta, mas o controle dos espaços de manifestação política permitiu que os militares saíssem do poder sem que isto ficasse claro para a opinião pública. No governo Sarney, o recém criado PT fez campanha acirrada pela ética   na política” e esta postura ganhou uma dimensão maior com os escândalos do governo Collor e que levaram à sua cassação. Com o protagonismo assumido pelos procuradores públicos, empoderados pela Constituição de 1988 e a contínua ação do PT, o governo FHC foi desgastado continuamente, sobretudo pela operação de compra de votos no congresso pela aprovação da PEC da reeleição. Não resta dúvida que esta identidade ética do PT favoreceu Lula na campanha que o levou à presidência da República em 2002.

Mas a eleição de Lula para a presidência se deu com uma eleição concomitante de um congresso com maioria de direita. Isto me recorda uma discussão que tive com meu velho amigo e companheiro de exílio no Chile e na França, Marco Aurélio Garcia, quando ele coordenava, em 1998, a comissão de construção do programa do candidato Lula à presidência e eu representava o PSB na subcomissão de política agrícola e agrária. Eu e Plinio Sampaio, representando o PT, escrevemos a proposta que a subcomissão (que incluía ainda o PDT, o PCdoB e o PCB) aprovou. Marco Aurélio achou as propostas muito radicais. “Com essas posições nunca chegaremos a ganhar as eleições”, ponderou o meu amigo. “Sem essas posições não vale a pena ganhar as eleições”, respondi. O PT (e as várias frentes que apoiaram o Lula desde 1989) foi amaciando as suas posições programáticas para ampliar a sua margem de votos. Deu certo para chegar à presidência, mas o efeito nas eleições proporcionais foi não obter uma maioria estável no congresso.

Como governar estando sem maioria parlamentar, com um congresso mais empoderado pela constituinte? Falou-se em presidencialismo de coalisão, mas o fato é que Lula precisou, tanto quanto os seus antecessores, de aliciar deputados e senadores. Ocorre que o sistema partidário brasileiro não favorece a formação de organismos políticos de caráter ideológico e programático. PT e, no começo de sua existência, o PSDB, eram as raras exceções. O resto era (e é) um aglomerado de interesses localizados ou temáticos, sem consistência em termos de projeto para o país. Criou-se a designação “baixo clero” para definir um número crescente de parlamentares cujo único interesse era manter o seu lugar na Câmara e no Senado. Por muito tempo, o modo de ganhar os votos destes personagens foi a liberação de verbas para projetos individuais dos parlamentares. Já o lado mais orgânicos dos partidos era atraído por cargos na Esplanada ou em empresas públicas e repartições espalhadas pelo país. Controlar ministérios, sobretudo os dotados com orçamentos vultuosos, permitia fazer política, orientando os investimentos públicos para os redutos eleitorais do partido. Por outro lado, a manipulação de concorrências e o pagamento de propinas por parte de empresas contratadas pelos governos foi uma forma quase que permanente quer para financiar os partidos, quer para encher os bolsos dos políticos. Foi o reino da chamada “caixa dois”, recursos doados para partidos e políticos que não eram oficializados na justiça eleitoral.

Estes mecanismos que têm que ser chamados pelo seu nome, corrupção, levam a uma distorção da capacidade dos diferentes partidos concorrerem nas eleições, já que uns acabam muito mais bem aquinhoados do que os outros. O PT e outros partidos de esquerda sofreram por muitos anos essa concorrência desleal e a denunciaram sem descanso. Mas uma vez no poder, o PT e Lula tiveram uma difícil opção: ou bem jogavam o jogo como os partidos que o antecederam no poder o fizeram ou ficavam reféns de um congresso hostil.

Na filosofia política da esquerda estalinista “os fins justificam os meios”, mas esta consigna não é exclusiva desta esquerda. Praticamente todo político, de qualquer ideologia, que passou pelo poder, teve que decidir, em algum momento, manter os princípios morais e éticos ou esquecê-los em nome de objetivos maiores. Para dar um exemplo histórico, o impoluto presidente Lincoln só conseguiu a maioria no congresso americano para declarar o fim da escravidão através da compra de votos, chantagens e pressões. Isto não legitima nem a corrupção nem o abandono da ética em função de objetivos nobres. Mas explica muita coisa.

Lula confessou em uma entrevista em plena fervura das denúncias do “mensalão”, que o PT fez o que sempre foi feito no Brasil, ou seja, usou recursos do caixa dois. Um crime menor, diferente da apropriação privada de dinheiro público ou de propina empresarial. Apesar do caixa dois ter, obrigatoriamente, uma contrapartida de vantagens irregulares para os doadores dos recursos, este pecadilho era tão comum que podia ser admitido de público sem consequências maiores do que um desgaste político.

Lula deu a volta no desgaste e se reelegeu com folga no segundo turno em 2006, saindo do governo em 2010 com 80% de aprovação. Isto pode significar que os fins justificaram os meios, aos olhos do eleitorado.

 No governo de Dilma Rousseff, que criou a expressão “malfeitos” como alcunha para casos de corrupção, a compra do apoio no congresso foi no atacado, via distribuição de cargos em ministérios e empresas públicas para aliados do centro e da direita. Ela teve como adversário um personagem sinistro que angariou um forte apoio do baixo clero, distribuindo benesses aos deputados, Eduardo Cunha. Este presidente da Câmara não teve qualquer vacilação em chantagear a presidente da República e o seu partido, sempre com a ameaça de colocar em votação o pedido de impeachment. E acabou fazendo isso, no dia em que o PT se recusou a votar por Cunha na comissão de ética da Câmara.

A escala da compra e venda de votos no governo Dilma foi maior e nem por isso ela conseguiu apoio estável. Com a perda de apoio popular no seu segundo governo, não houve caixa dois que desse conta de barrar o movimento pelo golpe. Ao mesmo tempo, a ação dos juízes e procuradores da operação Lava-Jato provocou, com o apoio militante da grande mídia, um enorme desgaste no governo. Os personagens presos e confessos eram todos dos partidos aliados, embora houvessem petistas acusados nas delações, inclusive o próprio Lula. Todos sabemos que estes processos foram amplamente manipulados com fins políticos e acabaram anulados e extintos por decurso de prazo. Mas só os muito ingênuos aceitam a narrativa de que foi tudo uma invenção de Moro e Dalagnol, da grande mídia e da CIA, segundo alguns,  visando não só derrubar o governo do PT, mas acabar com a Petrobras, entregar o pré-sal, destruir as empreiteiras nacionais, entre outros objetivos. Houve muita invenção criminosa, sem dúvida, mas os fatos básicos eram bem reais, tanto que bilhões foram devolvidos por corruptos e outros tantos pagos como multas por corruptores.

A marca deixada pela operação e pela intensa exploração midiática da mesma ficou enraizada na consciência dos eleitores e mais ainda pela decepção dos que haviam apoiado o PT e Lula pelo discurso da ética na política.

Bolsonaro, um corrupto do baixo clero, com uma família seguindo e aprimorando os procedimentos de enriquecimento ilegal do patriarca, tornou ridículos os montantes de dinheiro circulado na operação Lava-jato. O curioso é que, nem por isso, os bolsominions que urravam contra a corrupção dos governos petistas deixaram de idolatrar o “mito”. O que é mais grave é o fato de que Bolsonaro entregou as chaves dos cofres públicos para personagens como Artur Lira, o Eduardo Cunha da vez. Parcelas cada vez maiores do orçamento passaram para o controle de emendas individuais ou coletivas na Câmara e no Senado. Algumas são impositivas e cada parlamentar é dono de um quinhão polpudo para aplicar em seus redutos eleitorais. É um absurdo total do ponto de vista da lógica orçamentária de um governo de todo o país e não do somatório de municípios onde os parlamentares tem votos. É também um absurdo do ponto de vista da equidade nas campanhas eleitorais, já que os eleitos passam a ter uma vantagem enorme em relação aos outros candidatos, como aliás se verificou nestas últimas eleições.

Eliminadas pelo STF, as emendas do relator foram substituídas pelas emendas de comissão e o poder de manipulação de Lira ficou intocado. O governo Lula está tendo que conviver com um superpoder congressual, concentrado nas mãos sequiosas do presidente da Câmara. O jogo agora não é mais o caixa dois, embora ele possa reaparecer a qualquer momento. A compra de votos está oficializada e legalizada, só que ela tem um operador superpoderoso.

Lula foi eleito por uma coalisão formal de partidos de esquerda e centro esquerda, apoiado por uma ampla coalisão informal constituída pela grande mídia, organizações da sociedade civil, políticos de todas as ideologias, desde o presidente do Partido Novo, até os velhos próceres do PSDB, como José Serra e Fernando Henrique Cardoso, importantes empresários, juristas, intelectuais e artistas, padres, bispos e pastores, pais de santo, influenciadores digitais, outros. Não teria ganho sem estes apoios, inclusive e de enorme importância relativa, o de Simone Tebet. Para governar, Lula sabe que tem que ceder espaços no governo para partidos da direita e centro e está fazendo isso. O problema é que a pulverização dos partidos não garante que o apoio da direção do MDB ou do União Brasil se reflita em votos seguros no congresso. A compra hoje em dia é no varejo. E haja orçamento, secreto ou não, para satisfazer este cada vez mais amplo baixo clero.

Como já escrevi em outro artigo, chamar os fisiológicos para o governo é inevitável, mas tem um custo. Qualquer denúncia de corrupção, e elas já estão pipocando, vai contaminar o governo como um todo. Se Lula afasta um ministro suspeito de “malfeitos”, ele leva uma chave de galão do partido deste ministro, com ameaças de oposição no Congresso. Já aconteceu nestes menos de 100 dias e não deixará de acontecer mais vezes, pois é da natureza destes aliados.

Não há o que fazer, nestas circunstâncias, assim como não há o que fazer em relação às acusações levantadas na operação Lava-jato. A narrativa negacionista do PT e do Lula não é crível, mas a alternativa de fazer um mea culpa ou autocrítica pública teria sido um suicídio político e judicial. Paradoxalmente, os mesmos abusos de poder que permitiram acusar e condenar tantos políticos e empresários também derrubaram os processos e abriram caminho para a volta de Lula. A única solução para Lula e para o PT é se manterem mais puros que o cordeiro de Deus, no meio dos suspeitos do baixíssimo clero com quem eles vão ter que lidar no governo. E, repetindo a performance de Lula depois das acusações do mensalão, fazer um governo superbem avaliado que permita esquecer as más companhias.

A armadilha é exatamente o fato de que fazer uma super administração vai ser extremamente difícil dado o conjunto de teias que enredam o governo.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

A ARMADILHA – AS RELAÇÕES EXTERIORES (parte 8)

Jean Marc von der Weid, março de 2023

Muitos podem estranhar que o tema das relações exteriores esteja classificado como parte da armadilha que enreda o governo do presidente Lula. Afinal de contas, Lula não nos tirou da marginalidade internacional pela mera posse na presidência? E mais ainda, pelas posições avançadas assumidas em Sharm-el-Sheik, no Egito, antes mesmo da posse? Bolsonaro era de tal forma peçonhento, que os dirigentes políticos de todo o mundo, com a exceção óbvia de meia dúzia de fascistóides da mesma laia, apoiou de imediato o eleito e repudiou a tentativa de golpe. “O Brasil voltou”, foi um grito de alívio da diplomacia internacional e da nossa. Então porque este tema está nesta série de artigos?

A questão é mais interna do que externa e se refere ao contencioso sobre democracia e ditadura que tem enorme repercussão na mídia convencional e mais ainda nas redes virtuais. Ao não apoiar uma declaração quase unanime entre os dirigentes dos países da América Latina, condenando o regime de Ortega por violações de direitos humanos e dos princípios que regem as democracias, o governo Lula abriu um flanco desnecessário. Em outras palavras, recusou-se a assinar um libelo contra uma ditadura.

Lula já tinha dado mais do que uma escorregada, foi mesmo uma verdadeira sapateada  no tomate, ao ser entrevistado por duas jornalistas do El País, ao final de uma viagem triunfante pela Europa. Frente a uma pergunta sobre as eleições na Nicarágua por interlocutoras amplamente simpáticas ao nosso líder, Lula respondeu irritado com outra pergunta: “porque ninguém se espanta com o fato de que Angela Merkel está no poder há mais de 15 anos, mais tempo do que Ortega na Nicarágua?” O espanto das duas foi tal, que elas quase gaguejaram a resposta óbvia: “não pode haver comparação. Angela Merkel foi escolhida primeira-ministra pelo Parlamento alemão depois de várias eleições, onde as coligações que articulou tiveram maioria. Ortega mandou prender sete candidatos que se apresentaram contra ele, além dos processos eleitorais na Nicarágua serem amplamente contestados dentro e fora do país”. Lula mudou de assunto e passou a reclamar do fato de que tinha sido alijado das eleições de 2018 em processos fraudulentos. Este episódio deu pano para mangas aqui no Brasil, e só não foi mais explorado porque a grande mídia não tinha interesse, naquele momento, em enfraquecer o candidato que podia derrotar o energúmeno que se sentava na cadeira de presidente.

A posição do PT sobre as “ditaduras amigas”, Cuba, Venezuela e Nicarágua é contestada internamente no partido, mas prevalece um sólido negacionismo, aliado a uma retórica diversionista que não discute os regimes e sua natureza, democrática ou ditatorial, empenhando-se em mostrar ganhos sociais e apontar para o imperialismo americano para explicar qualquer problema. Implicitamente, é o mesmo que dizer que fazer um governo para o povo (questionável nos casos de Ortega e Maduro) e se opor ao imperialismo justifiquem regimes ditatoriais. Aí o bicho pega e o PT, Lula e seu governo dão margem aos ataques das campanhas da direita, do centro e até de outras forças da esquerda, embora com enfoques diferentes. A direitalha usa esta posição anacrônica para dizer que, no fundo, o PT é um partido comunista e quer transformar o Brasil em Cuba ou Venezuela. Quem não lembra do refrão “vai prá Cuba”, entoado pelos bolsominions para qualquer defensor de Lula ou do PT? Quando se verifica, pela última pesquisa de opinião, que 44% dos entrevistados acreditam que exista uma ameaça comunista real no país, não se pode tratar o tema das “ditaduras amigas” sem o necessário rigor, deixando-o de lado como secundário.

A posição do PT  e do Lula é tão mais anacrônica que eminentes esquerdistas da América latina e de todo o resto do mundo já declararam sua crítica a estes regimes, mesmo ressaltando a ignomínia do cerco econômico dos EUA, ou os ganhos sociais do governo cubano.

Há muito que me intriga este cacoete do PT e mais ainda do Lula, que não tem a mesma raiz mergulhada na lógica que formou uma parte da elite do partido, o estalinismo. O saudosismo dos tempos da União Soviética e do estalinismo dos partidos comunistas, me parece tão mais estranho porque, nos tempos em que estes que hoje defendem com unhas e dentes regimes ditatoriais estavam na militância contra a nossa ditadura e não havia simpatia pelo regime soviético. Sim, havia os que defendiam a ditadura chinesa ou albanesa, mas eram menos expressivos. Naqueles idos de 1968, enquanto estávamos metidos em lutas libertárias, houve um estranho hiato político quando da invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, repetindo os eventos da Hungria de 1956. As dissidências do partidão e o próprio partidão (muito diminuído no movimento estudantil) defenderam a invasão ou a criticaram com várias e encabuladas reservas. A Ação Popular e o PCdoB atacaram a invasão, apontando a União Soviética como uma expressão do capitalismo de estado e uma traição ao movimento socialista. Mas dentro da AP havia uma contradição entre os que discutiam uma revolução socialista e democrática e os que tratavam a defesa da democracia como uma tática e a “ditadura do proletariado” como um dogma, a ser aplicado uma vez  no poder.

Esta discussão evoluiu muito e foi sendo aprofundada ao longa das nossas vidas de militantes, sendo que a grande maioria passou a ser crítica aos regimes ditatoriais, de direita e de esquerda.

Este debate sobre as ditaduras amigas repercute em outra frente, a da guerra da Ucrânia. Ou a guerra dos Estados Unidos com a Rússia via Ucrânia. Não por acaso, a grande maioria dos que defendem os mencionados regimes, também é defensora de Putin e da invasão. Neste caso, as posições são mais complicadas devido ao apoio de Bolsonaro a Putin. Mas prevalece a visão geopolítica simplificada: “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Alguns vão mais longe e defendem Putin como um grande estadista. Lula, neste caso, está tentando uma posição centrista, nem lá nem cá, pela paz. Com a pretensão de se colocar como negociador, junto com outros países “não alinhados”. A meu ver, está metendo a mão em cumbuca onde não devia. O imbróglio ucraniano desafia mesmo diplomacias de maior peso. E, sem muita habilidade, adota-se uma postura em que, por um lado, o Brasil assina uma resolução das Nações Unidas condenando a invasão pela Rússia, ao mesmo tempo em que reivindica a inclusão nesta declaração de um parágrafo conclamando a paz. Os russos não deixaram de torcer o nariz para este tipo de “neutralidade”, pois o ponto de partida da resolução é a defesa da retirada das tropas invasoras. Por outro lado, o Brasil recusou-se a mandar armas ou munições para a Ucrânia, irritando tanto Zelenski como seu tutor, Biden. Lula arrisca de ficar mal com os dois lados. E, internamente, nas redes virtuais de esquerda, a polêmica segue cada vez mais agressiva.

Para completar esta mui breve avaliação dos nossos riscos diplomáticos, não posso deixar de repetir que o ponto mais favorável a Lula no plano internacional, a posição sobre o desmatamento e a questão climática, pode se voltar contra ele e a nossa diplomacia, se não formos capazes de levar a efeito esta proposta. Imaginem americanos, noruegueses, alemães e ingleses (que estão financiando ou se declaram dispostos a financiar as nossas políticas ambientais) cobrando o controle das agressões do agronegócio brasileiro às nossas matas tropicais e o governo brasileiro defendendo as nossas exportações oriundas dos biomas atingidos. De mocinho a bandido o passo é curto neste mundo cruel.

Não se trata de uma frente política tão ameaçadora como as outras enunciadas até agora, mas seria muito importante uma posição coerente pela democracia, aqui ou em qualquer outro lugar, sob pena de dar margem às acusações de que nem o PT nem Lula são verdadeiros democratas. É claro que os acusadores tem telhado de vidro, quer por suas posturas atuais (bolsominions) quer pelas passadas (mídia convencional), mas uma parte importante da opinião pública não se perfila nestas duas categorias e espera uma posição mais clara, no mínimo alinhada com o inatacável José Mujica.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2916

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

A ARMADILHA – O ENFRENTAMENTO COM O AGRONEGÓCIO (parte 7)

Jean Marc von der Weid, março de 2023

Já mencionei em artigos anteriores desta série, algumas das contradições entre o agronegócio e o novo governo do presidente Lula. Vou aqui explicitar as causas deste choque, que vem de longe, mas que tem tudo para se intensificar nesta gestão.

A agenda do agronegócio passou e passa pelos seguintes pontos:

Em primeiro lugar, este setor cobra a manutenção e até ampliação de generosos benefícios fiscais, tais como a anistia das dívidas com o FUNRURAL, a manutenção dos baixíssimos índices do ITR, Imposto Territorial Rural, aliás sonegado de forma generalizada pelas empresas e proprietários rurais, a isenção de impostos na importação de insumos agrícolas e juros subsidiados nos créditos. A reforma tributária vai ter que discutir todos estes privilégios e isto não vai ocorrer sem conflitos.

Em segundo lugar, o agronegócio cobra a repressão aos movimentos de sem-terra nos casos de ocupação de terras não cultivadas, de empresas violando as leis ambientais e daquelas que utilizam trabalho de caráter escravista. Com Bolsonaro, o agronegócio se armou para enfrentar estas ocupações na bala, e não deixou de usar seus capangas, não só para expulsar invasores, mas para assassinar ou tentar assassinar lideranças camponesas, indígenas e defensores dos direitos dos trabalhadores rurais. Desarmar o agronegócio e aplicar a lei nos casos de desmatamentos irregulares e uso de trabalho escravo não vai acontecer sem conflitos com o agronegócio.

Em terceiro lugar, o agronegócio quer a facilitação ainda maior das liberações de novos agrotóxicos e transgênicos, afastando a ANVISA da avaliação dos riscos destes produtos e entregando-a ao MAPA. Isto apesar das regras de avaliação da ANVISA já terem sido mais que amenizadas no passado. A defesa do meio ambiente e da saúde pública não vai ser bem aceita pelo agronegócio, é claro.

Em quarto lugar, e este é um ponto crucial nesta análise, o agronegócio quer acabar com as reservas naturais, indígenas e quilombolas, defendendo a sua expansão territorial. Não é preciso dizer que esta agenda está em choque direto com os direitos de indígenas e quilombolas e com a agenda ambiental do governo, apoiada pelos governos dos países importadores dos nossos produtos.

Qual a importância desta fome de terras do agronegócio para o seu sucesso econômico? Afinal de contas, toda a propaganda da CNA, e outros organismos do agronegócio, aponta para o grande avanço da produtividade dos seus sistemas produtivos na expansão da agropecuária brasileira, comparando com uma expansão muito menor na área de cultivos e pastagens. Se analisarmos os dados comparativos das culturas e criações brasileiras com a de seus concorrentes internacionais, em particular com os Estados Unidos, verificamos que os concorrentes tem maior produtividade no uso da terra, com menores custos no uso da tecnologia e também têm menores custos na manipulação e transporte dos produtos. Qual a nossa vantagem comparativa para estarmos entre os maiores exportadores do mundo? As nossas vantagens estão nos limites dos Estados Unidos (e outros exportadores) para ampliar a sua oferta, frente a uma expansão da demanda mundial, em particular a da China. Por outro lado, a legislação ambiental americana, apesar de bastante laxista, é mais rigorosa que a nossa ou, pelo menos, é aplicada com mais rigor. Também pesa na balança o valor mais baixo do real frente ao dólar. Este fator tem um porém, o custo mais alto dos insumos agrícolas (adubos e agrotóxicos), a maior parte deles importados pelo Brasil. Mas na balança de perdas e ganhos, a nossa soja leva vantagem nas exportações. Mas, as grandes diferenças entre os nossos custos de produção e os dos americanos estão no preço da terra e do trabalho, muito menores aqui.

O preço baixo da terra no Brasil tem a ver com a existência de amplas áreas não ocupadas para uso agropecuário. É verdade que estamos chegando a um limite nesta ampliação do uso do solo para este fim. Os ecossistemas nos quais esta expansão ainda se dá são, sobretudo, o Cerrado e a Amazônia. É mais do que sabido que a produtividade natural dos solos nestes biomas é baixa e que a resposta em termos de produção vai caindo em poucos anos. Isto significa que, para manter níveis razoáveis de produtividade do solo, o agronegócio tem que ocupar novas terras de forma contínua. Este processo evoluiu nos últimos 20 anos, levando ao deslocamento da produção pecuária sempre mais para o norte, enquanto as antigas pastagens no sul e no sudeste foram sendo substituídas por culturas de soja e de cana de açúcar.

Nas regiões, mais adequadas para a agricultura, do sul e do sudeste, o agronegócio é mais tecnificado e tem até áreas de excelência de alta produtividade, mas o conjunto é dependente deste movimento de ocupação de novas áreas. Na ocupação da Amazônia pelo agronegócio, o processo se inicia pelo desmatamento seletivo para explorar madeira de lei, seguindo-se o corte raso limpando toda a vegetação nativa para cultivar soja. Quando os índices de produtividade começam a cair as terras são entregues à criação de gado de forma extensiva até, no limite, o abandono dos empreendimentos e o surgimento do que se passou a chamar de áreas degradadas. Este processo também ocorre no Cerrado e no Pantanal, com variações em função dos ecossistemas. Hoje temos áreas degradadas cujo tamanho oscila, dependendo da avaliação, entre 80 e 120 milhões de hectares. Nada disso existe nos Estados Unidos e em outros países exportadores. A nossa vantagem comparativa econômica se mede em termos de destruição ambiental.

Este quadro aponta para um conflito estrutural entre a agenda do agronegócio e a agenda ambiental e faz deste setor um inimigo feroz de um governo que se declara disposto a zerar os desmatamentos em todos os biomas, cortando o processo de expansão do uso do solo pelo agronegócio.

O governo Lula está buscando alianças com setores “mais racionais” ou “mais modernos” do agronegócio, mas parece ignorar a forte unidade do setor e de sua expressão parlamentar, a poderosa bancada ruralista. Apela-se para a ameaça às nossas exportações representada pela legislação restritiva da União Europeia, visando sustar as importações de quaisquer produtos agropecuários oriundos, direta ou indiretamente, de áreas desmatadas. Isto é ignorar o fato de que nossas exportações deste setor estão cada vez mais centradas no mercado chinês, cuja demanda não para de crescer, apesar de uma relativa desaceleração. Os chineses não têm restrições ambientais como as da UE, que também estão crescendo ameaçadoramente para excluir produtos transgênicos. Todas estas ameaças, entretanto, não estão levando a mudanças nos procedimentos do agronegócio nacional. Ao contrário, o que o setor pede ao governo é que pressione os importadores para que elas não sejam aplicadas nos acordos comerciais em negociação já há muitos anos. Como vai se comportar a diplomacia brasileira? Vai assumir a defesa do agronegócio?

Há um outro fator de conflito em perspectiva. Onde ficará a defesa do direito dos camponeses à terra? O governo vai usar a legislação para desapropriar fazendas onde existe trabalho escrevo ou onde foi feito desmatamento ilegal? Isto está previsto na legislação, mas nunca foi aplicado. E já existem projetos de lei para mudar a legislação e evitar a desapropriação.

O MST e outras organizações campesinas perderam o poder de ação que tiveram, sobretudo no governo de FHC, mas não desapareceram, assim como não desapareceu a demanda de camponeses por mais terra. Onde fazer a reforma agrária? O governo deu uma dica em uma frase do Lula, mencionando a possibilidade de se promover um amplo reflorestamento nas áreas degradadas com assentamentos da reforma agrária. É uma proposta complexa e difícil. Reflorestar não é o mesmo do que implantar assentamentos de produtores camponeses para cultivar milho, feijão, mandioca ou o que quer que seja. O custo desta operação não vai ser pequeno. As áreas degradadas estão localizadas em regiões isoladas e com pouco infraestrutura social e econômica. Por outro lado, qual a renda possível de um assentamento de reflorestamento? Mesmo se as propriedades forem utilizadas em parte para a produção agropecuária junto com o investimento em reflorestamento, os assentados terão a responsabilidade de plantar e manter as áreas reflorestadas. E não se pense que basta deixar a natureza trabalhar para as matas nativas se recuperem naturalmente. Se assim fosse estas terras, abandonadas para cultivo ou pasto há anos, já estariam recuperadas. A degradação pode ter alcançado um tal ponto que só uma intervenção humana por algum tempo poderá levar a algum nível de recuperação. Ou seja, os agricultores eventualmente assentados nestas áreas de recuperação terão que ser remunerados pelos seus serviços de reflorestamento. Serão o que, na França, se intitulam “jardiniers de la nature” – os jardineiros da natureza. Acho a ideia excelente, mas a não ser que haja um maciço investimento externo para este fim não me parece uma empreitada ao alcance do Estado brasileiro nas condições em que se encontra.

E tem mais. Os camponeses sem terra preferem obtê-la nas suas regiões de origem, não só por razões culturais, afetivas e familiares, mas porque é onde tem experiência no saber agrícola. Todos os estudiosos dos processos de migrações forçadas ou induzidas no tempo da ditadura militar (na realocação dos atingidos por barragens ou na indução da migração de gaúchos para ocupar a Amazônia) sabem a enorme quantidade de desastres individuais e coletivos ocorridos nestas empreitadas. Os gaúchos não sabiam o que, nem como plantar naquele ecossistema tão diferente dos pampas, não estavam habituados ao clima e faliram e morreram aos montes.

A grande pressão pela reforma agrária virá dos filhos de pequenos proprietários que preferirem não migrar para as cidades ou dos quase 2 milhões de minifundistas com áreas inferiores a cinco hectares, localizados sobretudo no nordeste e nos bolsões de pobreza rural no sudeste, sobretudo em Minas Gerais, e no sul e centro oeste. Reforma agrária não é o mesmo do que uma colonização da Amazônia ou do Cerrado, a “solução” dos militares nos anos 70.

A decisão, se for tomada, de promover uma verdadeira reforma agrária vai cobrar a aplicação da Constituição, que definiu o conceito de uso social da terra. Isto significa aferir se os grandes proprietários fazem suas terras produzirem dentro de parâmetros técnicos, segundo índices de produtividade que foram definidos em 1988 e que estão totalmente defasados. A lei complementar indicou a necessidade de um permanente reajuste destes índices e o objetivo era suprimir os grandes latifúndios subutilizados, mas eles nunca foram revistos nestes 35 anos. Se o governo seguir este caminho pode esperar um brutal enfrentamento com o agronegócio.

Para terminar esta análise dos problemas do governo com o agronegócio temos que olhar para a premente necessidade de se enfrentar a demanda do mercado interno por alimentos. Já escrevi em outros artigos que o discurso que aponta a agricultura familiar como aquela capaz de responder a esta demanda não tem base na realidade. O agronegócio já é responsável pela maior parte da produção alimentar para o mercado interno, muito embora ele se volte, prioritariamente, para as exportações. Além disso, esta ênfase nas exportações vem se acelerando entre os produtores do agronegócio e os próprios agricultores familiares, sobretudo os mais capitalizados, diminuindo progressivamente a oferta para o mercado interno.

Para tornar a produção alimentar mais atraente vai ser preciso taxar as exportações para tornar o mercado interno mais competitivo. Não é uma operação fácil porque a concentração das exportações em uns poucos produtos voltados sobretudo para a ração animal não permitirá o aumento da oferta de alimentos apenas com a taxação. Não estamos no Vietnam onde a grande produção é o arroz, produto de alto consumo nacional e também o maior produto de exportação. Quando houve a crise alimentar de 2008/2009 o governo vietnamita segurou as exportações para garantir a oferta no mercado interno. Segurar as exportações de soja no Brasil não melhoraria o abastecimento interno de alimentos básicos, a não ser se aumentasse muito o consumo de tofú, mas pelo menos os preços do óleo de soja não seriam tão faraônicos. O consumo de carnes poderia ser ampliado no Brasil, limitando, em parte, as exportações. Isto está acontecendo agora devido à retenção das exportações de carne bovina para a China, devido a problemas sanitários. O preço da carne bovina caiu significativamente e os frigoríficos estão longe de estar em crise. Não há muitas outras alternativas de produtos taxáveis a não ser, eventualmente, o arroz e o milho. Converter a produção do agronegócio para o mercado interno de forma maciça vai exigir políticas mais amplas de preços mínimos garantidos pelo Estado e seus resultados não serão imediatos. E, certamente, a revolta do agronegócio vai ser brutal. No entanto, é bom olhar para as políticas de abastecimento do mercado interno adotadas pelos os países da União Europeia e da América do Norte. Em todos eles a primazia do mercado interno é a regra de ouro e as exportações são complementares.

Este conjunto de problemas colocados pelo papel assumido pelo agronegócio no Brasil, ao trazer o nosso país de volta para o ciclo das monoculturas de exportação e dolarizando a nossa produção alimentar, puxando os preços do mercado interno para se alinharem com as bolsas de commodities. O modelo produtivo adotado, com alto nível de impactos negativos no meio ambiente, na saúde pública e na distribuição de renda implica em um grande conflito para ser corrigido.

Esta é a maior armadilha que ameaça o novo governo e este não parece estar consciente do conflito que tem pela frente, não só pelas razões objetivas acima apontadas, mas também pela raiz ideológica e política já consolidada, com o agronegócio implicado tanto no apoio político a Bolsonaro como no apoio às tentativas de desestabilização da democracia no Brasil.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016Milita

A ARMADILHA- A CRISE ALIMENTAR (parte 6)

Jean Marc von der Weid, março de 2023

Não vou repetir os muitos dados e argumentos utilizados nos artigos anteriores que escrevi sobre este tema. O que interessa agora é analisar o que esperar, politicamente, do programa Bolsa Família turbinado, aprovado na PEC dita kamikaze no ano passado e que está sendo moldado pelo governo Lula para deslanchar em abril.

Para começar, é importante destacar que todo programa deste tipo não é, ou não deveria ser, mais do que um paliativo. Um paliativo importantíssimo por se tratar do direito humano à alimentação, mas que não pode ser visto como uma solução permanente para a sociedade. Nos Estados Unidos, entretanto, este tipo de programa, chamado de Food Stamps, existe desde a crise dos anos 30 e, desde então, socorre até 40 milhões de pessoas em estado de pobreza extrema. A opção de manter o programa indefinidamente tem várias causas: a persistente exclusão de uma parte significativa da população do acesso ao consumo básico para sobreviver; o interesse político no voto desta camada; o interesse dos produtores de alimentos em garantir um mercado de compras institucionais. Diferentemente dos nossos programas desde o primeiro governo de Lula, o FS não distribui dinheiro, mas “selos” (stamps) que dão acesso aos mercados de alimentos ou restaurantes autorizados.

A opção por distribuir dinheiro e não cestas alimentares ou vales para compra de alimentos tem sentido do ponto de vista operacional, mas este formato tem seus problemas. O mais importante é que ele não garante que os recursos serão usados para fins alimentares. Não estou aqui entrando no discurso direitista que afirma que os pobres gastam os recursos dos auxílios em bebida e drogas. Este tipo de desvio é, segundo todas as pesquisas, marginal. Mas as pesquisas apontam também para o fato de que, dependendo do momento e do público, os mais pobres gastam uma parte mais ou menos significativa dos recursos em outras necessidades.

Devia ser óbvio para os formuladores desta política. Na verdade ela trata a pobreza como algo que se expressa apenas na falta de recursos para comer e isto está muito longe da verdade. Pobres e miseráveis têm gastos incompressíveis, tal como toda gente em melhor situação. Aluguel, remédios e tratamentos, energia elétrica, água, gás de cozinha, transportes, roupas, artigos de higiene, educação, entre outros, não deixam de existir para este público. Na verdade, o que estamos fazendo é entregar recursos previstos apenas para a alimentação quando a demanda é para uma renda mínima que cubra o conjunto das despesas. O inevitável é que o público busque soluções para o conjunto de suas demandas, usando a ajuda alimentar como único ingresso disponível, nos casos mais extremos. Isto leva a população carente a usar o mínimo possível na alimentação para poder assumir os outros gastos.

Desde logo, o cálculo do volume necessário de recursos para garantir uma alimentação correta não tem qualquer relação com os valores atribuídos no Bolsa Família, como não teve no Auxílio Emergencial durante a pandemia e no Auxílio Brasil do governo do energúmeno. Alguém sabe como foi feito o cálculo dos custos da alimentação para chegar ao valor de 600,00 reais mensais por família? Trabalhando com a hipótese de uma família de tamanho médio de 4 pessoas, dois adultos e duas crianças e tratando estas duas últimas como uma só unidade de consumo adulto, a “bolsa” oferece 20,00 reais/família por dia, ou pouco menos de 7,00 reais por consumidor familiar por dia, se todo o recurso for usado na alimentação. O que pode comprar este recurso, sabendo-se que uma quentinha das mais baratas no Rio de Janeiro custa 15,00 reais? Este valor pode ser muito menor, segundo o tamanho da família, já que as famílias mais pobres tendem a ser mais numerosas. E, como vimos, nem todo este recurso vai para a alimentação.

Argumenta-se que este é um valor complementar à renda dos assistidos, mas mesmo os mais bem aquinhoados entre eles não ganham mais do que meio salário-mínimo por mês. Por outro lado, os valores distribuídos não levam em conta a renda per capita familiar para entregar um complemento. Todas as famílias recebem 600,00 reais por mês, tenham elas meio salário-mínimo de renda per capita ou que não tenham qualquer outra renda. A única diferenciação está no recurso adicional, introduzido pela equipe de transição de Lula, de 150,00 reais por criança com menos de 6 anos. Isto melhora a situação de todas as famílias com crianças, mas, mais uma vez, os mais e os menos pobres recebem o mesmo complemento.

Qual a consequência dos valores insuficientes dos aportes para o pagamento de uma alimentação nutricionalmente necessária, no mínimo o dobro do valor pago na bolsa? Qual a consequência do inevitável uso de parte deste recuso para outros fins? As pesquisas apontam para escolhas dos pobres e dos miseráveis no sentido de consumir os alimentos os mais baratos possíveis, os com menos custos na elaboração, e os mais fáceis de conservar. Caímos em uma dieta extremamente insuficiente, do ponto de vista da ingestão de proteínas, fibras, sais minerais e vitaminas. E extremamente nociva, do ponto de vista do excesso de sal, de açúcar, de produtos químicos e de carboidratos. Em outras palavras, uma dieta baseada em produtos super processados, de baixa qualidade nutricional, mas mais baratos. É a dieta do miojo com salsicha e refrigerante.

Esta dieta pode tirar esta população de pobres e miseráveis do mapa da fome, por oferecer uma ingestão suficiente e até exagerada de calorias. É o programa do “encher barrigas”. Mas não é um programa de segurança alimentar e nutricional e a consequência na saúde pública é brutal, com o aumento exponencial de casos de obesidade, diabetes, doenças cardíacas, câncer e doenças cardiovasculares.

Do ponto de vista político, talvez estes vícios de origem do programa não tenham impactos negativos. Afinal, comer porcarias industrializadas é visto pelos mais pobres como um avanço e não existe uma consciência alimentar e nutricional no Brasil, eu diria que nem na classe A. Os mais ricos se empanturram de BigMacs e milkshakes, pagando 10 vezes mais do que os mais pobres, mas com a mesma má qualidade nutricional ou próxima.

Pensado do ponto de vista meramente eleitoral, este precaríssimo programa Bolsa Família pode até ser um sucesso político para o governo, mas para o povo e o país ele é um desastre. O governo vai estar colaborando para afundar a saúde pública com efeitos para o curto, médio e longo prazo. A meu ver, trata-se de um equívoco gigantesco, só explicável pela dificuldade de enfrentar o problema com soluções reais e não ilusórias. Seria preciso muito mais recursos para criar uma renda mínima que cobrisse o conjunto das necessidades, pelo menos dos miseráveis, financiasse uma alimentação correta e garantisse um programa de educação alimentar intensivo e extensivo.

Como apontei no começo deste artigo, um programa deste tipo tem que ser combinado com soluções mais permanentes do ponto de vista de emprego e nível de renda, de tal forma que ele fosse se tornando marginal, dirigido apenas para situações excepcionais. Mas estas soluções estruturais exigem mudanças radicais no direcionamento do desenvolvimento econômico e na distribuição de renda e isto não está no horizonte deste frágil e assoberbado governo.

A crise alimentar pode ser a teia invisível na armadilha em que se encontra o governo Lula e, como já disse, pode até não parecer um problema. Mas estas amarras são das mais perigosas por terem efeitos permanentes e comprometem o futuro de todos nós.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

A ARMADILHA – A SOCIEDADE FRATURADA (p. 5)

Jean Marc von der Weid, março de 2023

A partir de 2013, a percepção de todos os analistas sobre a sociedade brasileira começou a mudar. Nos habituamos, desde o fim da ditadura militar, a olhar para os brasileiros como um povo em claro avanço político e ideológico. Até então, nas pesquisas de opinião, os interrogados que se classificavam como sendo de direita ou centro direita eram uma minoria. E pequena minoria. Prevalecia a identidade com o centro esquerda e a esquerda e até a extrema esquerda tinha significância. O voto majoritário em Collor era minimizado como um ponto fora da curva e, por 20 anos, o eleitorado sufragou candidatos à presidência vistos como de centro esquerda e de esquerda. Pode-se discutir se esta classificação política tinha consistência do ponto de vista de uma análise mais criteriosa, mas a leitura do eleitorado apontava para uma oposição entre uma identidade social-democrata (PSDB) e outra esquerdista ou socialista (PT e aliados). A direita não tinha dúvidas em classificar todos como sendo comunistas, mas o eleitorado não se alinhava com esta leitura.

Não percebemos que a oposição entre estes dois blocos empurrava o primeiro no caminho da direita e os laivos social-democratas do PSDB estavam sendo abandonados em troca de um discurso neoliberal na economia e de concessões cada vez maiores na pauta dos costumes. Já a esquerda petista e seus aliados também foram escorregando em direção ao centro, abandonando o discurso mais avançado na economia e nos costumes por uma postura mais palatável eleitoralmente. O choque foi se concentrando entre a defesa da reforma liberal da economia por um lado, e a defesa dos direitos dos pobres, negros, mulheres, indígenas, LGBTQIA+, meio ambiente pelo outro.

O pano de fundo da consciência social aparecia nas pesquisas de opinião, quando se apresentavam perguntas sobre casamento gay, aborto, pena de morte, igualdade de gênero, educação sexual, entre outras. A maioria dos consultados se posicionava contra as pautas mais avançadas, mostrando um persistente conservadorismo. Mas, apesar das resistências, as pautas mudancistas nos costumes fizeram alguns progressos nestas décadas, enquanto os valores democráticos eram definidamente apoiados pela maioria.

A virada da opinião pública a partir de 2013 veio como um raio em céu limpo para muita gente. Pela primeira vez desde o fim da ditadura, uma camada raivosamente antidemocrática, anticomunista e ultraconservadora nos costumes assumiu uma identidade pública e deu início à polarização que hoje marca a sociedade. Nas eleições de 2014, Dilma Roussef teve que enfrentar uma candidatura, a de Aécio Neves, que virava à direita, buscando este voto conservador emergente. Ganhou Dilma por muito pouco e teve que governar sob o signo da contestação do próprio processo eleitoral. Cresceu na opinião pública a rejeição pela política e a crença de que político “é tudo a mesma coisa”. É neste caldo de cultura que floresce a candidatura de Bolsonaro.

Os componentes que explicam este processo são debatidos pelos analistas. Uns dizem que tudo é consequência da campanha midiática massiva contra os governos da esquerda, em particular a exploração política dos escândalos de corrupção, chamados de mensalão e de petrolão. Não há dúvida que a aliança entre juízes e procuradores abusando das leis para fazer oposição política, solidamente apoiados pela grande mídia, tiveram um papel importante no isolamento de Dilma, mas temos que lembrar que Lula foi submetido a um processo semelhante em 2006 e foi reeleito com sobras, saindo do governo em 2011 com a popularidade em “níveis soviéticos”, mais de 80% de aprovação. Ou seja, o discurso anticorrupção não colou no eleitorado nesta primeira ofensiva. Por que colou na Dilma? A operação lava-jato tinha mais matéria para alimentar a mídia e, por outro lado, a gestão da economia, sobretudo no início do segundo governo, revelou-se problemática. Esta gestão foi ainda mais atacada por ter adotado o programa econômico do seu adversário no pleito, com uma série de medidas de austeridade, cujo impacto na população foi notável. A meu ver, foi a combinação do econômico com o ético que levou os índices de apoio à presidente para menos de 10% e favoreceram o movimento que levou ao golpe de 2016.

A partir do golpe, outro fator entrou na liça política: a intensa participação da direita nas redes sociais, assumindo uma hegemonia que ainda é vigente, embora relativamente enfraquecida. Bolsonaro foi assumindo um protagonismo cada vez maior nesta mídia alternativa e, pouco a pouco, criando uma malha de fidelidades e de militância com características de seita religiosa. Altamente profissionalizada na exploração dos facebooks, whatsapps, instagrams e outros, a direita compôs uma bolha poderosa de apoiadores que se interrelacionam de forma permanente, seguem as orientações e creem cegamente nas informações que nela circulam. Este fenômeno permitiu que fosse sendo cristalizada uma ideologia de ultradireita, simplista, homofóbica, racista, misógina, “antipolítica”, antidemocrática, anticientífica e antipobreza. Esta identidade, que jazia nos subterrâneos da mentalidade de boa parte da nacionalidade sem coragem de se assumir, veio à luz e se mostrou de forma agressiva e militante.

Este movimento foi sendo assumido e estimulado pelas igrejas pentecostais, sobretudo nas igrejas chamadas de “mercado”, mas não apenas. Sim, a IURD tem um partido para chamar de seu, o Republicano, e outras denominações elegeram seus bispos em várias legendas. A bancada da bíblia é hoje uma potência. Mas, não se pode acusar estas igrejas de ter gerado este movimento direitista. Durante o governo de Lula e parte do de Dilma esses pastores políticos fizeram acordos com a esquerda em vários momentos, mostrando um oportunismo bem característico. Mas foi só a maré mudar para eles adotarem o discurso extremista de direita e engrossarem a maré montante do bolsonarismo. Esta corrente evangélica ficou ainda mais empoderada quando os números da eleição de 2018 mostraram que Bolsonaro teve uma vantagem de 10 milhões de votos sobre Haddad entre estes eleitores. Esta foi exatamente a diferença total entre Bolsonaro e Haddad e os pastores se viram como os grandes eleitores do energúmeno.

Qual o tamanho do bolsonarismo nos dias de hoje? Não acho que o voto em Bolsonaro seja composto, na sua totalidade, por gente da “bolha” da ultradireita. Assim como Lula teve uma margem decisiva de votos que optaram por ele por oposição a Bolsonaro, o mesmo se deu na composição do voto deste último, com muita gente fechando o nariz para impedir a volta de Lula e do PT.

Apoiadores fanáticos podem ser identificados nas pesquisas de opinião entre aqueles que apoiam todas as propostas e posturas do “mito”. Este número ficou, durante a pandemia, por exemplo, entre 15 e 20% dos consultados nas pesquisas. Depois da polarização da campanha eleitoral (e com o trauma da pandemia ficando para trás) este apoio subiu para 25 a 30%. O discurso de ódio mantido na fervura permanente ao longo de quatro anos teve seus efeitos perversos, não só para consolidar uma opinião ultrarreacionária, mas para levar seus defensores a exprimi-la de forma violenta.

Mesmo tomando o número mais baixo destas estimativas, temos que constatar que a ultradireita tem uma base militante ativa nas redes e capaz de se mobilizar nas ruas em grande número, com um apoio da ordem de 25% do eleitorado.

Esta militância, quando se olha para seus participantes mais aguerridos, é capaz de atuar com uma dedicação que antes só se via na esquerda. Milhares de acampados na porta dos quartéis por quase dois meses, centenas de ativistas capazes de interromper mais de mil pontos em estradas federais e perto de três mil fanáticos capazes de atacar e destruir os palácios do executivo, do legislativo e do judiciário são uma boa demonstração do poder de fogo do bolsonarismo.

A atitude covarde e defensiva adotada por Bolsonaro desde sua derrota eleitoral, o fez perder prestígio entre os mais aguerridos dos seus apoiadores, mas nas bolhas da ultradireita o “mito” segue sendo a referência. A sucessão de escândalos, em particular o caso das joias das arábias, pode significar mais perda de apoio. No entanto, lembro da enorme quantidade de barbaridades perpetradas por Bolsonaro ao longo da sua vida e ao longo do seu governo e o quão limitado foi o efeito na sua popularidade. As bolhas da internet são tão poderosas para blindá-lo com narrativas inacreditáveis, mas engolidas pelos bolsonaristas como verdades divinas, que devo achar que o energúmeno é o próprio teflon, nada gruda nele.

Se Bolsonaro se tornar inelegível, em um dos seus inúmeros processos na justiça eleitoral e se ele for preso, por outros tantos processos na justiça comum, ele vai continuar a ser um “grande eleitor”, mas vai ser difícil achar quem o substitua no papel de “mito”. Isto vai ser um ponto positivo na sucessão de Lula.

A massa de manobra ativista e militante, agressiva e violenta, conta ainda com um perigoso componente: os mais de 700 mil supostos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores). Esta base que está armada até os dentes e com munição para uma longa guerra, ficou ausente das manifestações na porta dos quartéis e no badernaço de 8 de janeiro. Apesar de instados a participar por dramáticos chamados nas redes, a milícia armada de Bolsonaro não mostrou a cara. Isto não quer dizer que ela não exista ou que não queira se expor. Tudo vai depender do contexto político. Creio que este grupo tem um limitante importante que é a sua descentralização organizativa e a falta de um comando unificado. Fazer com que mesmo uma fração de não mais do que 1% desta base, ou seja, 7 mil milicianos, se mobilize para atacar alvos em todo o país de forma simultânea é complicado. Cada um sempre ficará com a pulga atrás da orelha, com medo de se expor com o seu pequeno grupo local, organizado em algum clube de tiro, e não ser acompanhado pelo resto da base em outros lugares. Mas ações pontuais são mais viáveis, sobretudo as do tipo atentado contra as torres de transmissão de energia ou outro alvo qualquer. Não podemos descartar este tipo de fustigamento do governo Lula no futuro.

A divisão política e ideológica da sociedade brasileira não foi amainada pelo tradicional período de trégua pós-eleitoral, os “cem dias de paz”. Não só a tensão foi ao paroxismo até o badernaço do 8 de janeiro, como as pesquisas mostram que oposição e apoio ao ex-presidente estão praticamente idênticos aos resultados da eleição, quase meio a meio. O que esperar dos próximos meses?

A direita bolsonarista e o “partido militar” estão na defensiva depois da operação repressiva aos participantes e responsáveis pelos ataques na praça dos Três Poderes. A ausência e tibieza do “mito” também estão deixando o bloco paralisado. “Vai voltar? Não vai voltar?”. A bolha está confusa e ainda tendo que defender o seu líder nos escândalos das arábias e outros mais. Mas isto não dura para sempre. A arena privilegiada do bolsonarismo ou, no caso de eclipse do “mito”, de alguma liderança emergente (os filhos? a mulher?), tende a ser o Congresso. As bancadas da bíblia e do boi, ambas bolsonaristas raiz, estão com uma série de pautas, umas de costumes e outras (anti)ambientais, nas suas agendas. Ainda estão à espera do momento adequado, e ocupadas com uma iniciativa de baixo fôlego, a CPI do badernaço. E travadas pela eterna negociação de cargos no governo, que pode limitar as alianças com outras forças da direita.

Com CPI ou com a disputa de várias pautas caras ao bolsonarismo, o que vamos assistir é um embate congressual acompanhado por uma batalha midiática e nas redes sociais, podendo evoluir para mobilizações de massa. A regressão na legislação sobre aborto, por exemplo, deve ser um tema de forte tensão dentro e fora do espaço legislativo. E outras se seguirão, sem descanso para o governo. O bolsonarismo está louco para provocar a esquerda e os movimentos identitários e disputar as ruas,  no número ou na violência. A esquerda não tem, há tempos, o monopólio das ações de massas e agora vai ter que mostrar que está viva e disposta a dar suporte ao governo e a sua agenda.

A reforma tributária é um tema árido e, para que possa provocar mobilizações, terá que ser difundida pedagogicamente para o povo ou ele não se mobilizará para apoiar o governo. Mas tudo vai depender da proposta de Haddad. Uma reforma que ataque a concentração de riqueza, diminuindo os encargos para o povão e para a classe média e aumentando para a classe A pode ganhar uma bela mobilização sob o signo da justiça redistributiva.  No entanto, o governo terá muito mais argumentos para sensibilizar o povo a manifestar seu apoio se justificar o projeto pela necessidade de recursos para programas muito concretos e que toquem as carências do dia a dia do povo.

A metade do eleitorado brasileiro não adotou esta ideologia execrável,l que vem se manifestando crua e brutalmente nos últimos anos, de uma hora para outra. Já havia uma camada, mais ampla do que imaginávamos, de racistas, misóginos, homofóbicos, etc. Esta gente que nos horroriza já convivia conosco, mas enrustidos ou, pelo menos, menos assumidos e agressivos. Afinal de contas, o racismo estrutural não é uma figura de retórica, mas uma realidade herdada de séculos de escravidão e de marginalização dos libertos. O que há de novo é que todas estas atitudes passaram a ser adotadas com fé e orgulho por uma parcela grande da população e tudo que antes estava reprimido e escondido veio à luz, destampado o bueiro onde esta lama moral jazia. Foi uma erupção de comportamentos não só discriminatórios, mas eivados de ódio, estimulado pela militância bolsonarista nas redes sociais e pelo próprio comportamento do energúmeno. A violência assumiu a forma mais extrema destas atitudes e aumentaram em muito o risco de negros, mulheres, indígenas, LGBTQUIA+ no seu dia a dia, inclusive pela violência policial.   

Desarmar a política do ódio e a ideologia da extrema direita vai ser algo muito difícil, mesmo se Lula conseguir deslanchar a economia e levar adiante seus programas sociais. O peso da ideologia retrógrada é muito grande e seguirá impulsionada pelas redes sociais e pelas igrejas pentecostais. Nas últimas eleições, ela foi capaz de arrastar mais de um terço do voto dos mais pobres. Se a economia andar para frente, melhorando emprego e renda e acompanhada de programas sociais consistentes os preconceitos entre os mais pobres, inclusive nas igrejas, podem ser quebrados, em parte. Mas a armadilha está justamente neste SE…

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

CASA-GRANDE & ROCINHA – DILSON CUNHA

“Infelizmente… a gente espera que isso não aconteça com a gente”, diz a mãe do inconsolável entregador chicoteado por uma vagabunda escravocrata numa rua do Rio de Janeiro.

Infelizmente, o brasileiro preto espera sim.

Em um país onde um juiz justifica o trabalho análogo à escravidão, espera sim.

Em um país onde a pele escura é o alvo da bala perdida da polícia, espera sim.

Em um país onde uma deputada corre na rua com uma arma em punho atrás de um desafeto preto e ainda assim é reeleita, espera sim.

Em um país onde um músico é fuzilado pelo exército numa via pública, com 80 tiros, sem dever nada, espera sim.

Em um país onde quilombolas são pesados em arrobas e o insano (então presidente da República) que diz isso é ovacionado na Hebraica do Rio de Janeiro, espera sim.

Em um país onde uma madame descarta para morte, num elevador, a criança de 5 anos filho de sua criada enquanto sua criada salvava o dia de seu cão, espera sim.

Em um país onde uma mulher preta é obrigada fazer compras de calcinha e sutiã para provar que não é uma ladra, espera sim.

Em um país onde uma mãe preta, moradora da Rocinha, diz a seu filho preto que nunca esperava que uma coisa dessas, ser chicoteado na rua por uma vagabunda escravocrata, acontecesse a eles, é um país onde se espera sim que isso possa acontecer.

A vagabunda escravocrata dormiu essa noite – livre, leve e solta – na casa-grande. Já os pretos passaram a noite esperando que qualquer coisa lhes possa acontecer, inclusive serem chicoteados com a coleira de um animal em praça pública por uma vagabunda escravocrata.

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Dilson Cunha é arquiteto, historiador e artista plástico.

RE-ENCONTRO COM CLAUDIA – AFFONSO ABREU

Um adeus ao luto!
Ego manifestat!

Um dia, um gato!
Um filme.
Uma fábula.
Uma fantasia.
Cine Ricamar.
Nosso primeiro beijo!
Longa história de vida.
Quinze de Março.
Seu aniversário.
Pensando em você.
Tempo de expressar sentimentos.
Que preciso nos dizer.
Com liberdade consciente.
Com suavidade e carinho.
Com amor e muita saudade.
Palavras escondidas na sombra.
Por um medo inconsequente
Reprimidas pela dor ou pela culpa.
Nesse imenso inconsciente.

Linda pessoa, sempre amada.
Por amigas e amigos.
Sempre lembrada.
Sempre te amei muito.
Sempre quis teu amor.
Sempre me senti amado.
Amada por nossa filha Mariana.
Gerada em ato de desejo.
Veio ao mundo apressada.
Por nós bem criada.
Para mim, seu maior presente.
Que cresceu e virou gente.
Mulher linda e consciente.
Como você, solidária.
Corajosa e lutadora.
Justa e protetora.
Humana e inteligente.
Que adora o sol.
Que adora o mar
Politizada e sempre alerta.
Pessoa do bem esteja certa.

Foram anos com sua presença.
A um só tempo forte e amena.
Dissimulada em suas dores, que pena!
Presente nas minhas dores, sempre integra e serena.
Amiga incomparável.
De quem nunca escutei um lamento.
Novamente, que pena!
Caminhou vida afora pela estrada da transigência.
Constrita!
Reprimida!
Resiliente!
Tudo deu, aceitou, concedeu.
Pouco exigiu!
De mãos humanas, recebeu carinhos e carícias.
De mãos desumanas, recebeu torturas e sevícias.

De repente, você partiu.
Em certo dia de março.
Mês em que nasceu e morreu.
Com coragem extrema?
Por desespero ou por desencanto?
Ato insano?
Plano bem elaborado?
Não sei se valeu a pena.
Pouco importa.
Exerceu suprema liberdade.
Dispôs da vida, como quis.
Criou asas e voou.
Para bem longe desse insensato mundo.

Senti sua perda de muitas maneiras
Sinto sempre e todo dia.
Muita dor no coração.
Muita saudade.
Aceitação.
Perplexidade.
Lindas lembranças.
Momentos de grande alegria.
Cumplicidade.
Harmonia.

Neste março.
Te liberto.
Me liberto.
Te desculpo
Me desculpo.
Seja longe.
Seja perto.
Sempre amigos.
Estou certo.
Muito amor.
Valeu a pena.
Hora de despedir.
Seguir em frente.
Em uma estrada florida.
Em uma estrada de luz.
Sem dizer adeus.
Apenas renascer.

Affonso Abreu
15/03/2022
Revisto em 07/04/2023

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