POR TODAS E POR CADA UMA – LIGIA BACARIN

O 8 de março não é uma data escolhida ao acaso. Ela é um marco histórico na luta da mulher moderna, urbana, fabril e partícipe da força de trabalho no pós-revolução industrial.


Se por um lado a alemã Clara Zetkin ao lado da Alexandra Kollantai, tenham nos ensinado sobre luta, mobilização e resistência e as 129 operárias que faleceram no incêndio da tecelagem Triangle Shirtwaits, em Nova York, em 25 de março de 1911, escancaram a precarização do trabalho feminino no início do século XX; por outro lado, o dia Internacional da Mulher necessita agregar às reivindicações político-econômicas, aspectos subjetivos vitais para que tenhamos um salto de qualidade na consciência da pluralidade da nossa luta feminista.


Entendo que datas são agendas importantes no que concerne à memória social. Por essa razão, na presença do Dia Internacional da Mulher faço um resgate de algumas questões subjetivas relevantes a essa anamnese coletiva.


Resgate necessário porque somos plurais: somos mulheres brancas, mulheres pretas, mulheres com etnias variadas, mulheres héteros, mulheres LGBTQIA+, mulheres pobres, mulheres com deficiência, além de uma gama de singularidades femininas que não são contempladas na grande maioria das referências no 8 de março. Sobretudo, após o atual renascer do neoconservadorismo da extrema-direita.
Nesse sentido, problematizo: Que mulher internacional é essa? Quais critérios de mulheridade usamos para celebrar, conscientizar e analisar essa data? Qual modelo de feminilidade referenda essa data?


Feministas como Séjourner Truth, Assata Shakur e Lélia Gonzales, sempre olharam com insubmissão o papel das mulheres na representatividade do 8 de março, uma vez que existem mulheres que ainda não deixaram aflorar sua essência empática. Atenção, não se trata de culpabilização ou negação do sisterhood, cunhado por Kate Millet, e sim de um clamor!


O que se clama é a responsabilização de todas nós na luta pela liberdade de cada uma de nós!


Com isso, torna-se um imperativo categórico lembrar (nesse 8 de março) a cada uma das mulheres, que o sistema patriarcal ocidental nos divide e não podemos ser massa de manobra, rebaixando nosso próprio lutar coletivo.


Dessa forma não podemos cair nas armadilhas de comportamentos que julgam outras mulheres por suas escolhas pessoais ou desrespeitam suas reivindicações. Temos que desconstruir a rivalidade feminina e substituir pela pauta da união.
Mais do que nunca, o gatilho da empatia deve ser ativado para fomentar o pluriverso de ser mulher! O patriarcado nos trouxe a capacidade de sermos empáticas, de expressarmos sensibilidade com a dor das outras mulheres.


Mais do que nunca, precisamos romper com as verdades hegemônicas que nos universalizaram! Mais do que nunca, precisamos resgatar nessa memória social, um 8 de março que poderá transformar essa data em uma efeméride daquelas que nos matrigestam e aquilombam!


Nosotras não possuímos recortes ou diagramações, possuímos sororidade das irmãs/minas/sister que caminham juntas em um auxílio mútuo para que possamos viver sem negociar nossa humanidade diante de um modo de produção social patriarcal cis-hetero-normativo.


Nesse sentido, hoje é o dia D!


De olharmos com minúcia e amor para a nossa própria condição feminina e removermos tudo o que nos impossibilita de sermos nós mesmas e de exercermos a sororidade que cada uma de nós necessita. Afinal, se é por todas é por cada uma também!

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Ligia Maria Bueno Pereira Bacarin é professora de História na rede pública de ensino. Com mestrado em Fundamentos da educação e pós graduação em Educação Especial. Militante do Psol-PR e colaboradora nas mídias sociais da Geração 68.

QUEM SEMEIA VENTOS… – JEAN MARC VON DER WEID

A última tragédia ainda está em curso e, para os que a sofrem, ainda vai durar muito. No noticiário ela vai sumir aos poucos, mas rápido. Vai se juntar a um rosário de outras tragédias. Chuvas torrenciais, cada vez mais pesadas, secas cada vez mais intensas e prolongadas. Os eventos ocorrem de forma cada vez mais disseminada, mais frequentes em alguns lugares mais vulneráveis, mas chegando onde nunca tinham ocorrido ou onde as ocorrências foram excepcionais. Pontos fora da curva no passado, estes eventos agora são a curva.

A culpa é dos governos, clamam as vítimas e a imprensa. A culpa é das vítimas, clamam os governos. E do aquecimento global, clamam os cientistas. Muito cuspe e muita tinta são gastos em argumentos, a vida segue e as histórias se repetem. Até quando?

Dizem que temos mais de duzentas leis sobre questões ambientais. Tal número é uma boa medida da sua impotência. Fazemos leis aos montes, na maioria muito ruins ou inócuas, mas quantas “pegam”? O deputado Carlos Minc criou um slogan para os seus mandatos, desde 1982: é um grito de alerta para a sociedade e os governos: “cumpra-se”. Infelizmente, é um clamor no deserto.

Enquanto isso, o planeta vai passando pela mais acelerada das transformações que já viveu. Na última época em que a Terra se aqueceu, em virtude de fatores incontroláveis como a oscilação do eixo do planeta, entre outros, o processo levou centenas de anos entre o subir e descer dos termômetros. Agora que os fatores derivam da ação humana, tudo está indo mais rápido.

O pequeno aquecimento global medieval citado acima foi um hiato na história do clima planetário. O mais importante e amplo processo de aquecimento foi anterior ao surgimento do homo sapiens e durou milhares de anos, antes de reverter em uma idade do gelo que também durou outros tantos anos. No período deste aquecimento, o nível dos oceanos subiu 12 metros e as temperaturas chegaram aos níveis que hoje estamos enfrentando. Todas as áreas costeiras dos continentes e ilhas que hoje conhecemos e onde uma parte enorme da humanidade habita ficaram sob as águas. Má notícia para nós, pois indica que, sem uma reversão do aquecimento global estas terras serão inundadas assim que o acelerado degelo dos árticos e dos gelos das montanhas se completar. Aliás, mesmo se houver um controle do aquecimento e até uma, improvável, reversão, não estamos lidando com um refrigerador, onde desligamos ou ligamos a tomada e, em pouco tempo, as temperaturas retomam os níveis anteriores. Há um “delay” entre as temperaturas registradas nos termômetros pelo mundo afora e o aquecimento ou desaquecimento dos oceanos e das terras continentais. O alagamento dos litorais pelos oceanos já é uma certeza. A dúvida é quanto tempo temos para que isto ocorra.

Por enquanto, o efeito do aquecimento global vem se fazendo sentir na forma dos chamados “eventos extremos”, ondas de calor e de frio, tempestades, secas, ciclones e tufões. Os cálculos dos custos destes eventos chegam a bilhões em cada caso individual e trilhões na somatória. Anualmente. Se o mercado reagisse aos eventos climáticos já estaríamos em franco processo de enfrentamento destes imensos prejuízos. Mas o mercado, com exceção das empresas de seguros, não se interessa por perdas deste tipo. E estas empresas recorreram a legislações, tornando-as isentas de responsabilidade em caso de catástrofes naturais. O mercado, no Brasil, reage às falas do Lula, mas não vi nenhuma oscilação na bolsa de valores com as tragédias, múltiplas ao longo dos anos, que nos afligem. Ao contrário, se o governo tomar qualquer medida para controlar a emissão de gases de efeito estufa, retirando subsídios para os combustíveis fósseis, por exemplo, o mercado vai reagir negativamente. Ou seja, se seguimos os ditames do mercado estaremos, literalmente, fritos.

É claro que os governos, municipais, estaduais e federal, têm culpa no cartório no que concerne as tragédias mencionadas. Além de não se fazer literalmente nada para conter o aquecimento global, faz-se pouco ou nada para prevenir e mitigar os seus efeitos. A tragédia de São Sebastião, como a de Petrópolis no ano passado, ou de Teresópolis/Friburgo alguns anos atrás, é uma combinação de causas climáticas e de causas econômicas e sociais. Se as encostas da Serra do Mar não estivessem sendo ocupadas por moradores pobres, sem alternativas habitacionais seguras, os rios de lama não deixariam de rolar, mas os prejuízos em vidas e bens seriam outros, muito menores.

Para o futuro vai ser preciso pensar em adaptações muito mais radicais do que fazer um conjunto habitacional em área não vulnerável no litoral. Como vimos acima, o litoral não vai estar onde está hoje e, tanto as mansões dos ricaços que atacaram os jornalistas que cobriam a tragédia chamando-os de comunistas, como os casebres das encostas vão ficar embaixo d’água.

Na dimensão das nossas vidas isto não vai acontecer. Não se trata de um filme catástrofe em que o mar toma conta de tudo em horas. E como todos temos tendência a pensar naquilo que nos afeta imediatamente e de esquecer o que chega mais adiante, mesmo que inexoravelmente, tanto os ricaços como os pobres vão seguir levando suas vidas como se não houvesse amanhã. Um amanhã prolongado, reconheço.

Como a política vive do imediato (dos índices de popularidade para as próximas eleições), não se pode esperar que governos e congresso se cocem para fazer algo significativo para conter, pelo menos conter, o aquecimento global.

Neste governo, Marina Silva é o “grilo falante” das questões ambientais. Lembram do personagem de Pinóquio? O bichinho ponderava com o boneco da forma mais razoável e nunca era ouvido. Uma Cassandra das histórias infantis. Apesar das promessas e acordos que Lula fez para trazê-la de volta ao seu governo, Marina já deve saber que os discursos de Sharm-el-Sheik duram até o primeiro embate da política real. O primeiro sinal foi dado com a vacilação de Lula em dar o ministério para Marina, com vários setores do PT pressionando contra, com o argumento da sua “radicalidade”. Por outro lado, Marina e Lula fizeram um gol de placa com a visita às terras dos Yanomami, em menos de um mês de governo, e a intensa ação pela remoção dos garimpeiros. Foi importante, importantíssimo, mas há outras áreas indígenas invadidas e muitas outras ocupadas por madeireiros e grileiros. Fevereiro foi um mês de recorde de desmatamentos e isto indica que a luta vai ser brutal.

 O desmatamento zero prometido por Lula vai cobrar uma radicalidade nas ações de governo que implica em confrontos, tanto com os ilegais como com os seus muitos apoios políticos. Já temos no congresso uma forte bancada ruralista que, majoritariamente, defende o desmatamento e a redução das áreas de reservas e indígenas. E temos até a novidade de uma bancada do garimpo. Como Lula vai lidar com esta gente, muitos deles parte da sua base política? No entanto, se alguma coisa podemos esperar deste governo é a sua aplicação na busca desta meta, até porque Lula está negociando um forte investimento de governos do primeiro mundo para dar sustentação a este objetivo. E não há leis novas necessárias para fazer este controle. Basta, e não é pouco, aplicar as leis vigentes e fortalecer os mecanismos de controle.

O desmatamento zero, que seria importantíssimo estender para o resto dos biomas, pode nos trazer para uma posição de grande destaque no mundo, zerando e até tornando negativa a nossa contribuição para o aquecimento global, hoje a quinta maior do planeta. Mas como dizia o poeta: “a vida é luta renhida, viver é lutar” (Y-juca Pirama).

Por outro lado, o baixíssimo nível de compromisso do governo e do PT com o aquecimento global se verifica na discussão recente e não concluída, sobre os preços do diesel e da gasolina. Os argumentos contra os subsídios e pela liberação dos preços se referem apenas aos impactos fiscais e orçamentários. E os argumentos que tendem a prevalecer, favoráveis a baixar ou manter os preços dos combustíveis, são todos de cunho político, preocupados com os índices de popularidade do presidente. Não vi ninguém, nem Marina, argumentando sobre a necessidade de se desestimular o uso destes combustíveis e nada melhor do que um preço alto para ter este efeito. Mais uma vez, procura-se baixar os preços para contentar os donos de automóveis e se argumenta com o impacto de um aumento na inflação.

Em todo o mundo, o nó da contenção do uso dos combustíveis fósseis está no custo político de aumentar os preços. Um aumento relativamente pequeno decidido pelo governo francês de Macron, anos atrás, levou à revolta dos chamados “coletes amarelos”. Os aderentes a este movimento vinham de setores variados, mas o núcleo duro era composto de agricultores e caminhoneiros. E com uma militância de classe média urbana de direita que aproveitou a onda para atacar o governo. Questão ambiental? Sumiu neste embate.

Para evitar tratar os diferentes da mesma maneira o governo poderia buscar uma forma de subsidiar o transporte de utilidade pública (caminhoneiros, taxis, ônibus, outros) e deixando subir os preços do transporte privado. A classe média e alta vai urrar e fazer baixar os índices de popularidade do Lula, mas há um preço a pagar por fazer o que é necessário.

Seria importante o governo lançar um programa, junto com governos estaduais e prefeituras, visando melhorar o transporte público de forma a torná-lo mais atraente, pelo menos para a classe média baixa. Lembro que os sistemas de transporte público em Paris (muito bons) servem a todas as classes, não porque o automóvel individual é caro, mas porque na cidade de ruas estreitas a circulação em automóveis é um inferno. Por outro lado, está mais do que na hora de se investir em um sistema intermodal de transportes, levando a minimizar o uso de caminhões no Brasil. A herança maldita de Juscelino, que preferiu o curto prazo e a ênfase nas estradas e nos automotores, terá que ser revertida um dia e, tanto a pressão dos preços dos combustíveis fósseis, como a do aquecimento global tornam esta operação uma prioridade.

Alguém viu algo sobre o assunto nos planos do governo? Bom, como não há exatamente um plano de governo, mas uma construção em marcha ainda podemos ter esperanças. Infelizmente, com o ministro dos transportes que temos qualquer visão para lá do minúsculo e eleitoreiro vai ser difícil. É o (enorme) preço a pagar pela frente amplíssima (inevitável, nas circunstâncias) que o voto esquizofrênico de outubro passado nos deixou. Vai ser a marca, também inevitável, deste governo: uma presidência progressista com o congresso mais reacionário do país, desde que os escravocratas perderam a maioria no século XIX.

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Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE, entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

A NOITE EM QUE O CONDOR POUSOU EM FOZ DO IGUAÇU – ALUÍZIO PALMAR

O medo tomou conta de Foz do Iguaçu na madrugada do dia 1º para o dia 2 de dezembro de 1974, quando quatro empresários desapareceram de repente.

Para Mongelos, Cabral, Aníbal e Stumpfs, aquele primeiro domingo de dezembro, parecia ser igual aos outros tantos domingos vividos em Foz do Iguaçu. O dia transcorrido não havia sido diferente dos demais – churrasco, siesta, tererë e Grenal.

À noite, Cesar Cabral foi dormir após ver o Fantástico; Anibal Abatte Soley, como de hábito jantou e se recolheu ao quarto; Rodofo Mongelos retornou da casa de sua namorada e Alexandre Stumpfs foi com a esposa ao cinema.

De repente, o que parecia ser mais uma noite tranqüila, o começo de madrugada é tumultuado por uma manobra militar de grande envergadura, com muitos recursos humanos e materiais.


Em pouco tempo os quatro cidadãos foram seqüestrados em vários pontos da cidade e no mesmo momento. Tudo aconteceu em trinta minutos, numa operação executada pelo Centro de Informações do Exército, envolvendo cerca de 20 homens fortemente armados e seis veículos de modelos diferentes

Dos quatro, três eram refugiados políticos no Brasil desde 1959, e saíram do Paraguai fugindo da ditadura do general Alfredo Stroessner.


Anibal e Stumpfs, empresários no ramo de exportação e Rodolfo Mongelos, dono de padaria no centro da cidade. O único com uma história diferente era Cesar Cabral, empregado na exportadora de Stumpfs. Argentino de nascimento e filho de paraguaios, Cesar deixou a faculdade em 1966 e veio para o Brasil por força das perseguições da ditadura do general Ongania. Em 1968, entrou no MR 8 e um ano depois foi preso no Rio de Janeiro, onde cumpriu pena no Presídio da Ilha Grande. Em 1971, saiu em liberdade condicional por ter cumprido metade da pena.

Cabral estava deitado quando bateram à porta; levantou para atender, dois homens entraram e disseram secamente para acompanhá-los. Sua esposa, Adelaide, com o filho Fabian, de dois anos no colo e Fabio, de seis anos, agarrado em sua saia, arregalou os olhos enquanto seu marido era raptado.

Na casa dos Abbate Soley não aconteceu diferente. A família estava dormindo quando foi acordada por uma buzina estridente de um carro que entrou na garagem. Aníbal pulou da cama, abriu a porta e três homens fortemente armados entraram na sala. Diante da esposa Cristina e das filhas Maria Letizia, na época com oito anos e das gêmeas de quatro anos Maria Rossana e Maria Grissel, os invasores arrancaram o fio do telefone e levaram Anibal.

Com Rodolfo Mongelos e Alejandro Stumpfs Mendoza, o rapto aconteceu nos mesmos moldes.
Rodolfo voltava da casa da namorada quando foi arrancado de dentro de seu veículo Opala e jogado violentamente dentro de uma Veraneio, que arrancou em alta velocidade. Algumas pessoas que estavam em frente ao seu estabelecimento comercial – a Padaria Progresso, assistiram a cena e nada puderam fazer devido a rapidez do seqüestro.
Quanto a Stmpfs, ele voltava do cinema com sua esposa Antonina Velasquez, quando seu carro foi abalroado por uma Veraneio e dela saíram três indivíduos que agarraram o empresário e dispararam em direção à BR 277, estrada que leva Foz do Iguaçu a Curitiba.

Os quatro carros, acompanhados por outros tantos, seguiram pela estrada e só pararam nas proximidades de Céu Azul, para que os raptores interrogassem suas vitimas dentro do Parque Nacional do Iguaçu.

O rapto dos três paraguaios e do argentino, exilados em Foz do Iguaçu, foi uma operação militar com largo tempo de preparação, muitos recursos humanos e materiais e deve ter exigido um grande esforço de coordenação. Foi extremamente sigilosa e executada por um grupo especial comandado por altos oficiais do Exército , que se deslocaram de Brasília, para raptar os exilados e levá-los para um centro clandestino de tortura, utilizado pelo Exército, no interior de Goiás.

Tomados pelo medo, aos raptados restou a submissão aos seus sequestradores. Estavam em condições adversas, sem saber a razão daquele ato de violência. Sabiam que por trás, manipulando a tropa, puxando os fios do comando, havia poderes e interesses maiores.

Vieram a conhecer esses poderes e interesses quando foram interrogados por oficiais do Exercito, de altas patentes.
Descobriram que eram vítimas de uma parceria entre as ditaduras do Brasil e do Paraguai. Que foram raptados no meio da noite, em seus lares e em frente de suas esposas e filhos, em nome das boas relações entre os dois regimes ditatoriais e do bom andamento das obras e do acordo para a construção da Usina de Itaipu. Eram vítimas da binacional da repressão e do terror.

O rapto dos exilados em Foz do Iguaçu foi um ensaio do que viria a ser a Operação Condor, criada oficialmente um anos depois, pelas ditaduras do Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, com o objetivo de coordenar a repressão a opositores e eliminar seus líderes.

Passado o susto, os familiares dos empresários seqüestrados, bateram à porta do então 1º Batalhão de Fronteiras e apresentaram denúncia na Delegacia da Polícia Federal. Os órgãos policiais estavam perdidos, sem rumo. A falta de informação era geral.
Amigos de Anibal Abatte Soley, e entraram em contato com pessoas influentes. Todos sabiam o que acontecia no Brasil e no Paraguai, onde presos eram torturados e desapareciam. Foram dias de muita apreensão. Os pedidos de informações não eram respondidos. A reposta era o silêncio.

Finalmente foram soltos, graças a forte pressão internacional. O papa Paulo 6º e o presidente venezuelano Carlos Andrés Perez, entre outros, condenaram o governo brasileiro pelas prisões. Anibal, Mongelos e Stumpfs foram soltos no dia 23 de dezembro. Cabral foi libertado uns dias antes.


A condição para a libertação dos sequestrados, foi a de que Anibal, Cabral, Mongelos e Stumpf, morassem longe da fronteira e não voltassem a Foz do Iguaçu num prazo de dois anos.

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Aluízio Palmar é jornalista, e fundador do CDHMP de Foz do Iguaçu. Em 1969, foi preso e em 1971, banido do País, após ser trocado juntamente com outros presos políticos, pelo embaixador da Suiça. É autor do livro “Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?” e em 2020, recebeu a Medalha Chico Mendes de Resistência, concedida por entidades de direitos humanos e movimentos sociais. É editor do portal DocumentosRevelados.com.br

MONÓLOGO DO FUTURO – ANGELA ZANIRATO

abraço meus escombros
tábuas de salvação
do que resta

ei, você!

estamos sós, percebe?
infinitamente sós
em meio a estas febres
coloridas
a olhos que olham longe
e nada veem
sandálias feridas de tanto caminhar no interior dos canos
em meio a estes meninos que cheiram as flores do mal
em meio ao tudo
que contém o nada

ei, você!

quanta humanidade havia
nas mãos dos homens de nosso tempo?

ajeito máscara de oxigênio
me abraço pela primeira e última vez
despeço-me de minha sombra

ei ,você!


-que me oferece o ombro:

agora é tarde

icei corda
desci o poço
as águas não me reconhecem

restou


o mergulho em mim.

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Angela Maria Zanirato Salomão É professora de História, Pós-Graduada pela UNESP de Assis e pela UEM, Maringá. Participou do Mapa Cultural Paulista versão 2015/ 2016, onde foi classificada para a fase final na modalidade conto. Participa da Associação de Escritores e Poetas de Paraguaçu Paulista- APEP. Tem poemas publicados em várias antologias. Foi publicada nos sites : Blocos Online , Parol , Movimiento Poetas del Mundo , Antologia do Mapa Cultural Paulista edição 2015/2016 ,versão e-book ,Revista de Ouro, Revista Ver- O- Poema , Revista InComunidade , Mallarmargens, Revista Digital Literatura e Fechadura, Revista Ruído Manifesto , Revista Ser MulherArte e na Revista Feminista Helenas. Foi curadora do projeto Doze contos insólitos do poeta Márcio Saraiva, em 2019. Em 2020 foi classificada em primeiro lugar no concurso de poesias da Editora Arribaçã. Está presente na Antologia As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira lançada pela Editora Arribaçã em 2021. Foi selecionada pela editora Rizomas para publicar original de livro de poesia em 2022 e pela editora Helvetia um romance.

NEOTRAGÉDIA – DILSON CUNHA

Nada de novo no livre mercado.

Sério que você está chocado com o feirão da tragédia na tragédia do litoral paulista?você, neoliberal tardio, está chocado com o que mesmo? Por que se chocar com o litro de água vendido a 93 reais? Ora, os donos das bancas do feirão nada estão fazendo demais além de aplicar as premissas do livre mercado! O que há de errado nisso? Simples assim: a lei da oferta e da procura. A mão invisível de Adam Smith. O “não existe almoço grátis”. Eles devem ser leitores de um Locke revisado para baixo. Oportunidade. Empreendedorismo. Individualismo. Estado mínimo. Amoralidade econômica. Meritocracia. Discurso da competência. Sim, todos os mitos do tão propalado livre mercado. Afinal, não é livre?

Viva Ronald Reagan! Viva Margareth Tatcher! Viva meu umbigo!

“Ah, mas numa tragédia?!” Dirá você, neoliberal tardio.

Ora, mas quando foi que o livre mercado se importou com as tragédias humanas? A fome de 33 milhões de brasileiros é o quê? A insegurança alimentar de mais de 100 milhões de compatriotas é o quê? A fila do osso no estado campeão de produção de grãos é o quê? A violência genérica e generalizada nas favelas do Rio é o quê? O racismo estrutural é o quê?

Se considerarmos as premissas (mitos) do livre mercado, o feirão da tragédia é o ápice da realização do neoliberalismo, da racionalidade do mundo financeiro e da liberdade da ganância. Como você dizia até ontem, enquanto os Wallaces Laras choram, outros vendem lenços.

De forma geral, a humanidade se divide em duas, apenas duas: os solidários e os egoístas. Dependendo do lado que você esteja, a tragédia na tragédia deve ou deveria ter outro significado.

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Dilson Cunha é arquiteto, historiador e artista plástico.

A INFLAÇÃO DE ALIMENTOS E COMO CONTROLÁ-LA – JEAN MARC VON DER WEID

Andei lendo vários artigos e escutando debates e lives sobre o candente tema da taxa de juros Selic e a necessidade de reduzi-la. Em anexo a esta tempestade de opiniões há o quiproquó da autonomia do Banco Central. Talvez não tenha pesquisado o suficiente, mas não consegui encontrar um foco bem definido sobre a origem da nossa inflação atual. Afinal de contas, os remédios dependem do diagnóstico, não é mesmo? Se a inflação é provocada pelo excesso de demanda, a solução clássica é esfriar a economia para apertar a demanda e buscar um equilíbrio que segure os preços. Isto se faz pelo aumento dos juros, puxados no Brasil, pela taxa Selic. Esta solução é sempre cruel, pois ela implica, normalmente, em baixar a renda e o emprego das grandes massas. Os economistas clássicos sempre explicam que é um mal temporário e que a inflação é o pior dos males para os mais pobres. Não quero discutir esta fórmula agora, até porque não creio que a força principal que move a nossa alta de preços seja provocada por excesso de demanda, embora isto exista em termos relativos que explicarei mais adiante.


Por que não se pode dizer que temos uma inflação de demanda? Desde logo, a perda de renda das grandes massas foi um contínuo, desde 2015 até agora, com as classes C, D, E, voltando a níveis pré Lula e a B estagnando, enquanto apenas a classe A teve aumento de renda no período. Não estamos falando da aquecida demanda por carrões importados, lanchas gigantes ou jatos (hoje em dia não dá mais para falar de jatinhos, como no passado, os bichinhos cresceram muito), que está provocando filas nos fornecedores. O peso do consumo deste setor, por mais suntuário que seja, envolve tão poucos que não é capaz de definir a direção geral da inflação. O que pesa na inflação é o consumo das classes menos favorecidas e muito mais numerosas. Pois bem, não só estas classes perderam poder de compra, como estão fortemente endividadas, com 70% de faturas que comprometem até 40% da renda familiar. Não há sobras depois dos pagamentos e das compras essenciais. Na verdade, não há dinheiro para a maioria cobrir estas despesas. De onde vem então a pressão de demanda?


Desde o início da pandemia e a votação pelo Congresso da chamada Ajuda Emergencial, depois transformada em Auxílio Brasil pelo energúmeno que nos presidia, até 20 milhões de famílias receberam valores destinados a permitir, teoricamente, que se alimentassem corretamente. Não cabe aqui discutir se estes auxílios eram suficientes para o fim proposto (e não eram), mas constatar que uma parcela significativa das massas populares recebeu recursos de auxílio. Mesmo considerando que nem tudo tenha sido gasto em alimentos, e algumas pesquisas apontam para “desvios de finalidade” de até 50%, este auxílio representou um aumento significativo na demanda de alimentos.


Minha hipótese de trabalho, não verificada por pesquisas concludentes, é que os beneficiários compraram os alimentos mais baratos como norma, e não os mais necessários para uma alimentação correta. Isto significa que a demanda de alimentos ultraprocessados foi relativamente mais forte do que a dos alimentos em natura ou apenas beneficiados. Tudo isto leva a minimizar o impacto de demanda sobre o consumo alimentar básico, até hoje definido pela cesta alimentar que o DIEESE acompanha e que foi consagrada na lei do salário-mínimo. Minimizar sim, mas impacto certamente houve. Nestes três anos de pandemia, os preços dos alimentos subiram muito acima da inflação medida pelo IPCA, sobretudo em 2020 e 2022, com um ano mais moderado em 2021. São números impressionantes: nos três anos citados os alimentos, em média geral, subiram 12,14%, 11,71% e 11,64%, contra um IPCA (o índice geral da inflação para toda atividade econômica) de 4,52%, 10,06% e 5,79%. Estes números indicam que a inflação dos alimentos se colocou em um patamar alto constante, sendo que no primeiro e último anos ela esteve levemente acima ou abaixo do dobro da alta geral dos preços. No outro ano, houve uma explosão geral de preços que praticamente igualou os dois índices.


Nos últimos 20 anos (lembrando que não havia auxílios governamentais com o peso dos tempos da pandemia), a inflação de alimentos ficou abaixo da inflação geral em seis anos. Entre 2003 e 2006, os anos do primeiro governo do presidente Lula, a alta de preços dos alimentos entrou em um descenso consistente, de 7,48% até 1,23% ao ano, acompanhada da queda também contínua e consistente do IPCA, de 9,30% até 3,4%. No segundo governo de Lula, a inflação dos alimentos deu um salto para o patamar que estamos galgando nestes últimos 3 anos, 10,79%, 11,11% e 10,39% nos anos de 2007, 2008 e 2010. Esta subida se explica pela crise de 2008, precedida pela escalada dos preços do petróleo em 2007. Nestes anos, o IPCA também subiu, mas menos, 4,46%, 5,9% e 5,91%. No ano de 2009, a alta de preços dos alimentos arrefeceu, mantendo-se nos 3,18%, abaixo do IPCA de 4,31.


Depois deste período a inflação dos alimentos esteve sempre acima do IPCA, em vários anos com valores até três vezes maiores. Houve um ano excepcional, 2017, em que a inflação de alimentos foi negativa, 1,87%, para uma inflação geral de 2,95%. Este foi o ano da grande depressão da economia brasileira provocado pelas medidas econômicas tomadas pelo governo Temer e isto derrubou pesadamente a demanda em geral e a alimentar em particular. Não deixou boas lembranças, apesar destes números aparentemente favoráveis.


A trajetória da inflação de alimentos precede, quase sempre, a da inflação geral. Isto se explica pelo fato de que a primeira é o mais importante componente da segunda, seguida pelo custo dos transportes. Mas o descolamento que se dá em termos do tamanho das duas inflações é notável e tem que ser entendido.


Antes do mercado responder à oferta/demanda de alimentos, definindo os preços que serão praticados, há um ponto de partida que são os custos de produção, processamento e colocação no mercado dos produtos alimentares, sendo que os custos da produção primária são a parte mais significativa desta operação. É preciso também levar em conta as margens de lucro dos agentes econômicos.


Não vou discutir em detalhe o conjunto dos fatores de produção da nossa agropecuária. O mais importante a notar é que os custos de adubação representam atualmente 30% de todos os custos da produção primária nos sistemas de produção convencional. É, de longe, o item mais pesado na conta. Estes custos não apenas estão muito altos, como tendem a crescer de forma sistemática nos próximos anos. A FAO avalia que os preços agrícolas entraram em uma espiral de alta sem perspectiva de mudança significativa e que os preços dos fertilizantes têm um papel nesta tendência.


O alto preço dos fertilizantes se explica por duas razões. A primeira é o fato de que eles dependem da disponibilidade de minerais de fósforo e potássio e o custo de identificação de novas jazidas, exploração e processamento, bem como dos níveis de reservas e custo de extração, processamento e distribuição de petróleo e gás. Em todos estes produtos estamos assistindo a um processo cada vez mais acelerado de esgotamento das reservas e aumento dos custos de identificação de novas jazidas e das maiores dificuldades e custos na sua exploração. O “pico” da produção de fósforo, por exemplo, já teria ocorrido em 1989, segundo alguns analistas. Segundo outros, ele ocorrerá em menos de uma década. O potássio tem reservas mais amplas, mas o pico da produção deve ocorrer até meados do século. Já as reservas de petróleo e de gás ou bem alcançaram seu limite ou este está chegando rapidamente, dependendo de estudos conflitantes.


Por outro lado, o mercado de fertilizantes é altamente oligopolizado e isto permite que quatro ou cinco empresas definam os preços de acordo com os interesses de seus acionistas. Este conjunto de fatores (disponibilidade de matérias primas, custo de exploração e controle de mercado) indicam que os preços dos fertilizantes vão pressionar de forma contínua os preços dos alimentos e dos produtos agropecuários no presente e no futuro.


O Brasil depende em 80% das importações de fertilizantes para manter a sua produção agropecuária convencional. Esta é a razão pela qual os preços deste insumo tenham subido tanto desde o início da guerra da Ucrânia. Importamos boa parte do potássio utilizado da Rússia e de Belarus, que juntos representam 33% da produção mundial. 53% dessa produção vem do Canadá, o que dá uma ideia do nível de concentração da oferta global.


Além dos problemas de acesso a estes produtos devido às sanções impostas aos russos e seus aliados e aos preços mais elevados que o mercado definiu desde o início da guerra, somamos ainda à nossas dificuldades a alta taxa de câmbio, 30 a 40% acima de um “normal” teórico.


Poderíamos repetir esta demonstração para outros insumos como as sementes, cujos preços, também oligopolizados, subiram muito acima da inflação.
Com os custos da produção agropecuária subindo sem limites, a nossa produção nacional tem um patamar elevado que deve se manter, na média, bem acima da inflação, ajudando a pressioná-la continuamente.


Para resumir, temos no Brasil uma inflação com múltiplos fatores pressionando pela expansão, sendo que os mais importantes estão nos custos, apesar de uma parte significativa estar relacionada com o aumento de demanda provocado pelos programas de auxílio aos mais pobres.


Muitos analistas tendem a desconsiderar a pressão dos custos, indicando que o grosso da nossa produção de grãos e de carnes continua encontrando mercados com preços capazes de remunerar os produtores. Isto tem a ver com a nossa integração nos mercados internacionais de commodities, aquecidos pelo aumento da demanda de países como a China. Isto resolve o problema dos lucros do agronegócio, mas representa um problema extra para o nosso mercado interno. Com a nossa economia agropecuária fortemente indexada nos preços das commodities, a espiral de aumento de preços dos alimentos a nível nacional é de difícil controle. Boa parte das dificuldades de oferta de alimentos no Brasil tem a ver com o fato de que é mais lucrativo para os produtores entrar neste circuito exportador do que produzir para um mercado interno que é dependente da capacidade de pagamento de uma população pauperizada ou dos valores das ajudas governamentais. O feijão não tem cotação em Chicago, mas o produtor nacional não deixa de comparar os preços alcançados pelos produtores de soja e de milho e isto influenciou muitos deles, nos últimos 30 anos, a optar pelas cadeias exportadoras.


Neste quadro acima descrito, aumentar a taxa de juros para esfriar a demanda não resolve nada, mas baixá-la também não. Ou, pelo menos, não basta para resolver o problema alimentar no Brasil.


Para enfrentar o problema dos preços crescentes dos alimentos no país, que incidem na alta constante da inflação em geral, temos que adotar uma série de políticas visando o aumento da produção interna, buscando a diminuição dos custos de produção. Os agroeconomistas clássicos apontam como solução o aumento da eficiência no uso dos fatores produtivos. Um desses fatores é o preço da terra e isto leva o agronegócio a buscar a desregulamentação do seu acesso, com aumento das áreas cultivadas através do desmatamento. A terra é um fator produtivo barato no Brasil, em comparação com países como os EUA, os da União Europeia, a Argentina e a Austrália. Mas facilitar o acesso a terras indígenas ou reservas naturais tem outras implicações sociais e ambientais graves. Além disso, trata-se de uma solução de curto prazo, já que estas novas terras cultiváveis se encontram em ecossistemas com solos frágeis e de baixo potencial produtivo. O segundo fator é o aumento da produtividade agrícola. O uso mais racional dos insumos industriais na produção agropecuária esbarra na necessidade de fortes investimentos tecnológicos, tais como os que implica a chamada agricultura de precisão. De toda maneira, mesmo esta maior eficiência no uso de insumos não nos deixa livres das pressões do aumento contínuo do seu custo.


O que temos que fazer implica em mudanças radicais no nosso sistema de produção agropecuária. Desde logo, temos que diminuir o uso de fertilizantes químicos, agrotóxicos e sementes de empresas, além de diminuir o uso de combustíveis fósseis na produção. Racionalizar este uso é um primeiro passo, mas certamente insuficiente. Retirar os subsídios ao uso dos insumos é uma medida necessária para incentivar a racionalização do seu uso, embora tenha um efeito imediato de aumento de custos. Outro passo importante seria a substituição dos fertilizantes importados por outros de produção nacional. Como não temos jazidas significativas de fósforo e de potássio, a solução seria a reciclagem do lodo de esgoto e do lixo orgânico. Temos condições de atingir a autossuficiência em fertilizantes, mas isto vai exigir um investimento nacional na implantação de usinas de compostagem. Tecnicamente isto não é um problema pois as soluções são bem conhecidas e já foram aplicadas de forma localizada. Trata-se de uma escolha de política pública, designando recursos de investimento adequados para uma rápida expansão, em colaboração com governos estaduais e municipais e estimulando empreendimentos privados. O efeito colateral positivo seria diminuir o impacto ambiental de lixões e de despejo de esgotos in natura em rios, lagos e mar.


Esta solução pode melhorar a performance do nosso agronegócio, mas não resolve o problema de fundo. É toda a lógica do agronegócio que está em questão. Definir políticas que estimulem sistemas agroecológicos é uma exigência para o nosso futuro. Mas como estas políticas não tem efeito de curto prazo em escala suficiente para brecar a pressão da alta dos preços dos alimentos, vai ser preciso enfrentar a demanda aquecida destes produtos estimulada pela ajuda governamental.


Para ser coerente com a proposta de ajuda aos mais pobres, o governo Lula vai ter que traçar uma política de importação de alimentos essenciais até que a produção nacional responda a estímulos de expansão. E estes alimentos terão que ser, muito provavelmente, subsidiados, pois os preços internacionais estão tão aquecidos como os nacionais. Para não erodir o valor da ajuda provocada pela alta dos alimentos o governo vai ter que estudar uma política que torne os valores dos alimentos básicos importados adequados aos valores da ajuda.


A questão das metas de inflação, da política fiscal e controle do déficit público serão objeto de outro artigo, que também discutirá o tema da autonomia do Banco Central.
São muitas mudanças radicais e não estou vendo o governo ou a sociedade discutindo esta problemática pelo ângulo colocado neste artigo. Mas não custa dar um voto de confiança no novo governo e esperar para ver.

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Jean Marc von der Weid
Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971
Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983
Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016
Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

CHARGE – PROFESSOR CYRILLO

Em charge relatando a tragédia do Novo Ensino Médio, professor Cyrillo define em traços precisos o aprofundamento das desigualdades sociais e a colocação do trabalhador como um mero apertador de parafusos. “O rico cada dia mais rico e o pobre cada vez mais pobre”.

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Prof. Cyrillo (Peco), professor de arte em São José dos Pinhais, chargista, ilustrador e designer, atua na política sindical a 35 anos em SP agora no PR, fez parte da direção do núcleo sindical metrosul

SEQUESTRO – JEAN MARC VON DER WEID

“Dona Regina, fui eu quem sequestrou o embaixador.” Margarida dos Santos Rilas, a Gaída, foi babá de meu tio Domingos Álvares de Azevedo Sodré, filho temporão de meus avós maternos, Fábio de Azevedo Sodré, deputado federal pelo Rio de Janeiro em 1934 e Irene Lopes Sodré, ambos bisnetos do Visconde de Mauá. Depois de cuidar do tio Domingos, a Gaída foi adotada pela nossa família quando minha avó morreu e ela foi morar com o meu avô.

Gaidinha tornou-se uma querida figura da família, a única avó que tivemos por perto, já que a paterna vivia na Suíça. Veio de Paraty muito nova para trabalhar na fazenda da minha avó, o Engenho do Mato, hoje um bairro de Niterói. Depois de cessarem as suas funções de babá ela ficou “agregada”, costurando para todos nós, da minha mãe a todos os cinco filhos. E fazendo doces, sua segunda especialidade. Usei camisas, calças e cuecas costurados por Gaída até os 18 anos, quando passei a comprá-los. Diria que as roupas das lojas da moda não eram melhores do que os produtos caseiros, apenas tinham grife.


Não sei que idade tinha aquela figura tão carinhosa e doce. Ela tinha suas preferências entre os cinco filhos da minha mãe e eu não estava entre elas. Mas Gaída não deixava de dar carinho a cada um de nós, apesar do amor mais evidente pelo meu irmão Jean Pierre. Talvez, como ela dizia, porque ele era tomado por “nervi”, ou a forma como ela descrevia os acessos de raiva do meu irmão mais novo.

Gaída nunca saía de casa, embora tivesse os fins de semana livres. Dormia no mesmo quarto de minha irmã Betty e roncava horrores, segundo a maninha. Não tinha relações, senão muito esporádicas, com a família dela, que tinha vindo de Paraty para Nova Iguaçu, em geral para pedirem o dinheiro do salário que ela guardava no colchão.

Com esta vida isolada que só se relacionava com o mundo através do rádio, Gaída era um personagem da nossa paisagem familiar que, no fundo, não conhecíamos. Nunca fiquei sabendo como é que ela comprou um loteamento no céu, próximo do trono de Jesus. Um dia encontrei na porta dos fundos do nosso apartamento na Barão de Icaraí, 44/22, no Flamengo, um cobrador da prestação perpétua deste lugar privilegiado no além.

Desconfiando do personagem, interroguei a Gaidinha e fiquei sabendo da falcatrua. Eu devia ter uns 16 anos e não tinha a necessária sabedoria para não a decepcionar e botei o tipo para correr. Ela ficou tristíssima ao descobrir que tinha sido enganada, mas acho que não me agradeceu por ter revelado a falcatrua. Devia ter deixado que continuasse acreditando que tinha um lugar privilegiado junto a Deus, mas fiquei orgulhoso da minha façanha, desmascarando o pilantra que eu nunca soube como tinha conseguido enganar a minha babá que nunca se encontrava com ninguém.

Pois bem, quando me meti na política estudantil e virei a vida da minha família pelo avesso, a Gaída passou a me ver como um paladino dos pobres e oprimidos. Depois que fui preso pela primeira vez em junho de 1968, um troglodita, coronel do Exército chamado Helvécio Leite, passou a ligar para a minha casa para tentar aterrorizar a minha família. Depois de uma destas ligações encontrei a Gaída aos prantos, em pânico depois de ter atendido a chamada do coronel ameaçando de mandar me matar. Na chamada seguinte passei uma descompostura no coronel por aterrorizar a minha doce babá e o idiota parou com as chamadas.

Pouco tempo depois, a barra pesou e eu fui condenado pelo tribunal militar e fui para a clandestinidade. Nunca mais vi a minha querida Gaidinha, que morreu antes que eu voltasse do exílio. Na parede dos apartamentos em que morei na França tinha pendurada uma foto, tirada pelo meu irmão Roger, com a Gaidinha fazendo as deliciosas cocadas que tanto nos encantavam. Não sou de chorar, mas uma das poucas vezes em que o fiz foi quando chegou uma carta da minha mãe, dizendo que ela tinha partido para o além, quem sabe buscando o lugar privilegiado a que tinha direito pela bondade.

Quando estava preso na Ilha das Flores, toda semana meus pais me levavam coisas de comer e sempre havia um docinho mandado pela Gaída. Segundo me disse depois a minha mãe, a Gaída sofria muito com a minha situação e rezava pela minha libertação. Ao ser anunciado o sequestro do embaixador suíço e o pedido dos revolucionários da VPR com uma lista de militantes a serem libertados em troca do personagem, Gaída entrou em pânico. O Rio de janeiro vivia sob o terror das ações dos militares, revistando gentes e procurando o local onde estaria escondido o embaixador. Foi neste momento que Gaída se abriu com a minha mãe e disse: “fui eu quem sequestrou o embaixador”. Mamãe pensou que Gaidinha tinha ficado gagá, mas perguntou como ela tinha feito isso. “A senhora lembra que eu pedi um fim de semana de licença há dois meses atrás?” Mamãe tinha estranhado muito este pedido, pois Gaída nunca tinha saído de casa ao longo de mais de cinquenta anos, mas respeitou o pedido sem outras perguntas. “Decidi soltar o nosso menino e fui para Paraty encontrar uma figura poderosa que eu conhecia quando lá morei. Paguei por um despacho um galo preto, um bode preto e um porco preto e ela me garantiu que em dois meses a pessoa estaria livre.” Embora não tenha sido registrada a informação sobre quem era a entidade para a qual ela apelou, desconfio que se tratava de Exu. Pouco tempo depois, deu-se o sequestro e o pedido da minha libertação e Gaída ficou convencida que ela tinha gerado toda aquela confusão, e estava com medo de ser presa como comunista. Não sei como mamãe lidou com esta situação, mas quando voei para Santiago para ser libertado a Gaída ficou orgulhosa do seu feito e aliviada por não ter sido presa pelo sequestro.

Os compas da VPR nunca souberam, mas quem comandou o sequestro foi Gaída. Não apenas por terem soltado 70 presos, mas por terem me incluído no grupo. Sempre me intrigou ter sido parte da lista da VPR. Afinal, eu poderia ter sido solto na lista dos 40, trocados pelo embaixador alemão, mas não o fui. Por que no do suíço? Segundo o Alfredo Sirkis, quando a lista foi discutida no comando que fez o sequestro, ele propôs o meu nome e ele foi recusado por 10 ou 9 a 1. A decisão final foi do Lamarca e ele decidiu incluir o meu nome como um gesto para os suíços, já que eu tinha dupla nacionalidade, era meio suíço e meio brasileiro. O fato de que eu era presidente da UNE não teve a menor importância. Fosse qual fosse a razão, eu entrei na lista e os orixás mobilizados pela Gaída devem ter tido um papel na decisão do Lamarca.

Sou muito grato à Gaída e ao Lamarca pela escolha, que não só me poupou de uns cinco anos, pelo menos, de cana, mas deu um sentido à minha vida que não teria sido possível se tivesse ficado para trás.

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Jean Marc von der Weid
Ex-presidente da UNE (69/71)
Preso político entre setembro de 1969 e janeiro de 1971
Banido pela ditadura até a anistia de 1979.

POEMAS | Hoje não vou ao mar (Angela Zanirato)

Hoje não vou ao mar

Insônia
coração acelerado na madrugada
a filha pergunta o motivo
excesso de café-
-excesso de medo-
a cerveja fora de hora-
-excesso de medo novamente-

da última vez foi excesso de excesso
não sou dada às exceções
tudo que contém vida
devoro

ultimamente a vida vem em conta gotas
doses homeopáticas
não preenchem o vazio
e o relógio olhando para mim com cara de sono
-dorme aí senhor relógio
não tenho horas para nada
você não cura taquicardias
passo creme acido retinóico
antissinais

o livro de Lorca na cabeceira
medo de Lorca poeta louco
escondo o livro de mim
será que a 180 batidas por minuto
o coração explode?

Lorca fuzilado
Herzog enforcado
Stuart Angel assassinado
meu coração saindo pela boca
os olhos desmaiados de sono
a cabeça trabalha como uma fábrica

medita
medita
medita
faz yoga pilates
nada
nada
nada

nada lembra água mar
Alfonsina foi ao mar
lavar angústias
por lá ficou
amanhece
resisto
sempre resisto

coloco água em minhas plantas
nada
nada
nada de nada
beijo a boca da kalanchoe lilás
o dia também tem seus estatutos.

Angela Maria Zanirato Salomão é professora de História, Pós-Graduada pela UNESP de Assis e pela UEM. Participou do Mapa Cultural Paulista versão 2015/ 2016, onde foi classificada para a fase final na modalidade conto. Participa da Associação de Escritores e Poetas de Paraguaçu Paulista-APEP. Tem poemas publicados em várias antologias. Foi curadora do projeto Doze contos insólitos do poeta Márcio Saraiva, em 2019. Em 2020 foi classificada em primeiro lugar no concurso de poesias da Editora Arribaçã. Está presente na Antologia As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira lançada pela Editora Arribaçã em 2021. Foi selecionada pela editora Rizomas para publicar original de livro de poesia em 2022 e pela editora Helvetia um romance.

O BAILE DO ESQUELETO – ALUÍZIO PALMAR

Em fevereiro de 1967, nós, da Dissidência Comunista do Estado do Rio de Janeiro, realizamos um baile de carnaval com o intuito de angariar finanças para montar uma gráfica e nela rodar nossos panfletos e um jornal.
A atividade foi intitulada “Baile do Esqueleto”, numa referência à construção do prédio da UFF, que durante anos permanecia apenas com colunas e lajes.

A União Fluminense de Estudantes, nos deu cobertura e fizemos o baile no Sindicato dos Operários Navais de Niterói.

Salão lotado, sucesso total. Tudo transcorria normal até que, de repente, soldados da PM e agentes do DOPS baixaram no Sindicato e prenderam os carnavalescos.

A causa da invasão foi a cantoria da paródia da marcha rancho Máscara Negra, de Zé Kéti, sucesso daquele carnaval.

Acompanhando a banda, a estudantada cantou a plenos pulmões:
“Quantos tiras!
Oh! Quantos gorilas!
Mais de mil milicos em ação.
Estudantes apanhando
pelas ruas da cidade,
gritando por liberdade.”

No meio de toda a confusão de camburões e estudantes presos, o Nielse Fernandes, da direção da DI/RJ que estava na portaria passou a arrecadação para que o Milton Gaia Leite me entregasse. Eu o esperava de terno e gravata debaixo da marquise do Cine Central. Naquele época só se entrava no Cine Central de terno e gravata. Peguei a sacola com a grana e dei no pé. Fui parar no dia seguinte na cidade de Campos, onde a base local do PCB já havia conseguido uma impressora para vender por um bom preço.

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Aluízio Palmar é jornalista, e fundador do CDHMP de Foz do Iguaçu. Em 1969, foi preso e em 1971, banido do País, após ser trocado juntamente com outros presos políticos, pelo embaixador da Suiça. É autor do livro “Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?” e em 2020, recebeu a Medalha Chico Mendes de Resistência, concedida por entidades de direitos humanos e movimentos sociais. É editor do portal DocumentosRevelados.com.br