Quando a ideologia capitalista é a matriz de gestores.

Francisco Celso Calmon

Um é a favor do desemprego, a outra é a favor de que os aposentados do INSS recebam a cada ano menos valor real da aposentadoria.

Ambos minam o governo lula para descumprir suas promessas de campanha.

Ambos são filiados à ideologia capitalista, na qual manter um exército de desempregados é regra para que os trabalhadores saibam que existem outros à espera dos seus postos de trabalho e tenham menos força de negociação para aumentos de salários. 

Prejudicar os aposentados é outra regra, pois, para o capital é mão de obra inservível, já venderam as suas forças de trabalho por décadas, já engordaram o capital, através da mais valia, o suficiente para serem descartados.  

Num momento de tragédia ambiental e humana, a manutenção da Selic elevada e levantar a velha cantilena do déficit da previdência social, não é só desumano, mas também politicamente inoportuno e sem respaldo técnico. 

Por que não apresentar um cardápio para tirar de quem tem sobrando e especulando?  Por que não estipular um imposto de guerra por pelo menos três meses sobre os que ganham mais de vinte salários mínimos? Por que não repensar na volta da CPMF (melhorada e adequada tecnologicamente)? Por que sempre penalizar os pobres e nunca os demasiadamente enricados?

No cardápio da Simone Tebet faltará para os aposentados a picanha e a cervejinha prometidas pelo Lula, e as restrições serão num crescendo, pois quer desvincular para sempre o aumento real dos aposentados, a sua proposta é a precariedade crescente sobre os idosos. Os aposentados contribuíram sobre o valor do salário real, agora propõe reverter essa regra. 

Quanto aos juros, argumentos técnicos e de gestão não mudam o papel do representante dos rentistas e bolsonarista raiz, Bob Neto, que sabota abertamente à economia nacional e o governo do presidente Lula. 

A última reunião do COPOM mostrou três sinais: primeiro, ele não tem o grupo na mão; segundo, teve que se expor e desempatar e o fez pela redução mínima de 0,25 %; terceiro, não são critérios técnicos objetivos, mas, subjetivos e de natureza político-ideológico que o presidente e outros diretores do BC usam.  

Juros altos só retraem o consumo e o investimento, sem os quais não há crescimento econômico, aumento de emprego e melhorias das condições de vida.  

Ambos, Simone e Bob, com suas propostas e medidas querem a manutenção do desemprego e da insuficiência alimentar dos aposentados.

Metas de inflação, de limites de gastos com a saúde e a educação, desconexadas de metas positivas, consoante à Constituição Federal, agridem frontalmente o artigo terceiro da Carta Magna.

Gastar mais com juros do que com a saúde e a educação a quem beneficia? Ao país e ao povo evidentemente que não.

É mister que haja metas prioritárias do bem comum: emprego, salário, saúde, educação e assistência social, dignos, como é o mandamento constitucional. 

Vamos colocar o seguinte parâmetro como exemplo: os gastos com os juros não podem ultrapassar os investimentos com saúde e educação. 

Parâmetro para o câmbio, de maneira que atenda às necessidades competitivas de exportação e de importação necessárias ao desenvolvimento econômico do país. 

Meta fome: zerar a insuficiência alimentar, enquanto não atingir a meta, os bancos pagarão um imposto temporal de 0,01% de seus lucros líquidos para socorro dos famélicos, quantia equivalente a 10,7 milhões, com base no lucro que os cinco maiores tiverem em 2023.

Meta emprego: enquanto o pais não atingir o índice de 4% de desemprego, haverá uma contribuição provisória de 0,1 dos 100 maiores empresários do país.

Meta ecológica: zero queimadas, corte irracional de árvores, garimpagem predatória, controle rigoroso de química na lavoura, etc.

Criar matérias para todo o ensino, do fundamental ao universitário, sobre ecologia. 

A presidente do PT, sempre alerta, já se postou contra Simone e Bob Neto e suas posições. E os demais partidos de esquerda, e as centrais sindicais e os movimentos sociais?

Estudantes brasileiros ainda letárgicos na luta contra a guerra genocida aos palestinos; sindicatos esqueceram de como mobilizam os trabalhadores; os culpados clamando para não procurarem os culpados; a mídia direitista, com a bandeira inócua da não politização, pregando a alienação.

Solidariedade não é passividade e nem imobilidade quanto às causas e os responsáveis da falta de prevenção ante os fenômenos climáticos, especialmente aos com potencial de destruição flagelante.

O clima mudou, a natureza vem reagindo à ação predatória que o homem lhe impõe há séculos, notadamente com a vigência de um capitalismo de desastre, no qual, como o livro Doutrina do Choque, de Naomi Klein, narra como o capital, se não provoca sempre desastres naturais, dele se aproveita para explorar a reconstrução em seu benefício.

O negacionismo, o darwinismo social e o malthusianismo da caserna vêm sendo matriz fascista expansionista no mundo diante da impotente ONU.  Entretanto, a solidariedade ainda existe e o povo brasileiro vem dando essa demonstração, apesar das trapaças e mentiras da extrema direita, bem como a juventude estudantil internacional na solidariedade ao povo palestino contra o governo genocida de Israel.

Uma tragédia provoca sentimentos diversos, geralmente é uma ocasião onde valores humanos e cívicos se sobrepõe à indiferença e às pregações raivosas e deletérias.

É uma conjuntura adequada para a promoção dos direitos humanos e dos valores ideológicos do humanismo, assim como para a elaboração de um projeto de desenvolvimento econômico ecologicamente sustentável, tendo os seres humanos e a natureza como referências centrais em vez do lucro desvairado do capitalismo.

Os eventos climáticos voltarão a acontecer e até pior, segundo previsões de cientistas. O que não pode voltar a ocorrer é a mesma ou pior tragédia humana.

Proagir, é o lema a ser obedecido doravante por todas as instâncias governamentais. Os governos devem ser proativos e não esperar acontecer tragédias para correr atrás de remendos.

A intentona de 8/1 e esta tragédia gaúcha fornecem ao Lula e ao Estado democrático de direito indicativos para onde o Brasil deve caminhar e não permitir mais retrocessos. 

Tudo é política, tudo dever ser politizado. Afinal, fora da política é a barbárie.

Francisco Celso Calmon

*Texto ampliado em relação ao original publicado.

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.

O milagre da multiplicação dos alimentos

Jean Marc von der Weid, maio de 2024

O Governo Lula anunciou, por várias formas, inclusive um artigo do Ministro do Desenvolvimento Social, Welington Dias, a retirada de 24,3 milhões de brasileiros e brasileiras do mapa da fome em apenas um ano de governo! Como explicou este sucesso espetacular? Foram citadas várias medidas governamentais que teriam tido este efeito maciço: aumento do Bolsa Família, atualização dos valores da merenda escolar, mais emprego, aumento real do salário-mínimo, retomada do Programa de Aquisição de Alimentos. As explicações se dirigem, essencialmente, ao aumento do poder de compra de alimentos destes milhões de famintos. Nada foi dito sobre a oferta de alimentos e dos seus preços.

O número é tão espantoso que poderia ser levado diretamente para Guiness Book of Records. E ele faz sombra ao milagre bíblico (Novo Testamento) em que Cristo multiplica pães e peixes (uma boa dupla do ponto de vista nutricional), alimentando uma multidão de cinco mil fiéis durante um sermão famoso. A enxurrada de números gloriosos deixa ouvintes e leitores atônitos, mas o bom senso indica que alguma coisa está errada.

Para começar, se tantos deixaram de passar fome, o que é que eles passaram a comer? Se consideramos a dieta básica clássica do povo brasileiro, centrada no arroz com feijão e derivados do milho ou da mandioca, este aumento de demanda representaria uma enorme pressão sobre o mercado de alimentos, já que não houve um aumento da produção de arroz, de feijão e de milho (para consumo humano) ou mandioca no ano de 2023. Também não existem informações indicando a sua importação. Ao contrário, uma porcentagem pequena, mas significativa, de arroz foi exportada. Como o arroz com feijão e a broa ou o fubá já não fazem parte da dieta corrente sequer das classes mais abastadas, o aumento da demanda de alimentos pode ter sido dirigido para derivados do trigo, como pão, massas e bolachas. Mas também não houve aumento significativo na produção ou na importação de trigo. Outras pesquisas vêm apontando para a adoção de uma dieta muito insuficiente, do tipo “encher barriga”, pela população mais pobre e faminta. São ultraprocessados como miojo e salsicha, símbolo desta alimentação inadequada, mas que podem fornecer suficientes calorias para que as estatísticas os retirem do mapa da fome. Não tenho a menor ideia sobre o comportamento deste setor do sistema agroalimentar, mas não me consta que tenha havido uma explosão na demanda e na oferta destes produtos.

Se não houve aumento de produção e teria havido um enorme aumento de demanda, o efeito seria uma forte inflação de alimentos que corroeria o aumento de renda destes famintos e não permitiria romper o ciclo vicioso da fome, pelo menos para uma boa parte destes 24,7 milhões. A inflação de alimentos, de fato, continuou forte durante o ano de 2023, quase sempre o dobro da inflação geral, mas não parece alta o suficiente para indicar o pesado desbalanço que o hipotético milagre provocaria.

Há outros fatores a considerar nesta equação: os pobres não gastam toda a sua renda em alimentos pois são obrigados a fazer outros gastos, ditos incompressíveis: moradia, transporte, saúde, educação, comunicação, vestuário, outros. E ainda deve ser levado em conta o fato de que perto de 60 milhões de pessoas estavam inadimplentes no começo do ano passado e mesmo o ótimo e bem-sucedido programa Desenrola implica em regularizar o pagamento (facilitado e diminuído, é verdade) de dívidas. Ou seja, nem toda a melhoria de renda foi dirigida para a compra de alimentos.

Finalmente, não se pode esquecer que o aumento de renda não foi tão forte como afirma o governo. Houve um aumento do emprego, mas com ênfase na informalidade e as pesquisas indicam que, mesmo com o aumento real (bem modesto) do salário-mínimo, a renda dos mais pobres não recuperou os níveis (que já eram insuficientes) de 2014. E o Bolsa Família? Os valores distribuídos no ano passado apenas mantiveram o valor nominal do Auxílio Brasil de Bolsonaro, com um acréscimo para famílias com muitos filhos. Não houve um salto espetacular na renda dos mais pobres em relação aos auxílios anteriores, seja o emergencial seja o de Bolsonaro (entre agosto e dezembro de 2022) em sua tentativa de ganhar o voto deste setor popular. 

E então? Como explicar o “milagre”?

O governo usou duas pesquisas diferentes para chegar a este resultado “milagroso”. A primeira é da Rede PENSAN, datada de 2022, indicando a existência de 33 milhões de famintos (insegurança alimentar grave), 60 milhões de pessoas subnutridas (insegurança alimentar moderada) e 32 milhões de com diferentes tipos de desequilíbrios alimentares (insegurança alimentar leve). A segunda é do IBGE, indicando a existência de 8,7 milhões de famintos. Mas ao comparar uma e outra pesquisas, o governo fez o que minha tia avó chamava de juntar as galinhas com os leitões. A comparação correta seria com a pesquisa do IBGE em 2017/18 e nesta, o número de famintos era de 10,3 milhões, enquanto a pesquisa anterior, de 2013, contava 7,25 milhões. Ou seja, pelo IBGE, o número de famintos que saiu do mapa da fome entre 2017 e 2023 foi de 3,05 milhões. Não é um número nada desprezível, mas não se pode afirmar que este efeito tenha ocorrido apenas neste último ano. No entanto, é bem provável que uma boa parte dos beneficiários tenha sido favorecida depois da partida do inominável.

Os dados da pesquisa da Rede PENSAN já tinham sido questionados por outros, divulgados pela FAO em relação a 2021. A entidade das Nações Unidas para a alimentação e nutrição indicou a presença de 20,5 milhões de famintos. Embora haja uma diferença de um ano entre as pesquisas, a diferença com a pesquisa da Rede não pode ser explicada pela data de cada uma. Afinal de contas, é de todo improvável que o número de famintos tenha crescido em12,5 milhões (61% a mais) em apenas um ano. As diferenças entre estas duas pesquisas podem ser explicadas por abordagens metodológicas diferentes, sendo que a FAO faz, essencialmente, a contagem de calorias ingeridas, eliminando do mapa da fome todos os que conseguem acessar mais de 1200 calorias na sua dieta. Já a Rede registrou, na sua pesquisa, a regularidade do acesso a três refeições por dia, independente do que vem para o prato. A questão é que os números de cada uma dessas pesquisas se referem a situações distintas e não podem ser comparadas. Esperemos para ver o que a próxima pesquisa da Rede vai indicar.

Para completar quero apenas reforçar argumentos já esmiuçados em outro artigo (“O Programa Brasil sem Fome (PBSF)” –https://68naluta.wordpress.com/2024/04/20/o-programa-brasil-sem-fome-pbsf/), cuja leitura recomendo. Primeiro: sem ampliar, e muito, a produção diversificada de alimentos, a fome aberta (desnutrição), oculta (subnutrição) ou leve (desequilíbrios nutricionais) não vão ser eliminadas. Segundo: sem uma renda mínima mais robusta não vai ser possível a adoção de uma dieta adequada. Terceiro: sem mobilizar os produtores médios e grandes do agronegócio esta ampliação da oferta de alimentos não vai ser possível. Quarto: a agricultura familiar não tem como responder (no curto prazo) ao aumento da demanda de alimentos que uma política consequente de nutrição vai acarretar. Ela terá uma contribuição a dar, mas não será suficiente, a não ser que o governo acelerasse muito a reforma agrária. Quinto: vai ser preciso uma política de educação alimentar maciça combinada com o aumento da oferta de alimentos para uma dieta correta, ou o povo vai continuar se alimentando de ultraprocessados. Sexto: apesar de não ser possível, no prazo curto, oferecer “alimentos saudáveis no campo e na cidade” através da conversão para a agroecologia, é possível estimular o aumento de produção com o uso de técnicas menos agressivas ao consumidor e ao meio ambiente.

Finalmente, temos que discutir o impacto da crise climática no Rio Grande do Sul na oferta de alimentos básicos para todo o Brasil.

Com a comoditização da agricultura brasileira e a sua integração nos mercados globais, a produção de alimentos no país não só vem caindo como vem se concentrando em determinados territórios e produtores. O caso mais dramático é o do arroz.

O Rio Grande do Sul concentra algo entre 70 e 80% da oferta de arroz no Brasil. Mais ainda, esta produção está concentrada em um número limitado de municípios, envolvendo produtores de porte médio e grande, com uma parte menor sob responsabilidade de agricultores familiares. O arroz já foi uma cultura espalhada por todo o país, mas a produção capitalizada, empregando o uso de agroquímicos, sementes melhoradas por empresas (hoje centrada nas privadas) e maquinário foi concentrando a oferta na área hoje alagada pelas chuvas torrenciais das últimas semanas. E hoje em dia esta produção também está cada vez mais articulada com o mercado internacional, com volumes crescentes sendo exportados.

O preço desta concentração está sendo cobrado agora, com a perda de (segundo empresas do mercado) 11% da safra. Este número deve estar bem subestimado, já que informações dos produtores indicam que 20% da safra ainda não tinha sido colhida e deve ser perdida na sua quase totalidade. Por outro lado, o arroz estocado nas propriedades pode ter sido afetado pelas inundações e isto ainda não foi avaliado.

Em situações normais, governos e produtores fazem estoques de segurança para eventuais crises. Nos países desenvolvidos esses estoques respondem pelo consumo de dois a três meses ou 16 a 25% da produção. Mas os estoques de arroz da CONAB estão zerados desde o governo Temer e não foram recompostos no ano passado, primeiro ano do governo Lula. Aliás, não foram apenas os estoques de arroz que estavam e estão zerados.

Por que será que o governo deixou esta política de lado? Em primeiro lugar porque os preços do arroz estavam aquecidos e o governo preferiu deixar para recompor o estoque com os preços na baixa. É um raciocínio voltado para um conceito diferente, o da regulação do mercado e não o da segurança do consumidor. Ao usar o conceito de regulação, faz sentido o adiamento das compras para recomposição do estoque, compra-se na baixa de preços para sustentá-los, beneficiando os produtores, e vende-se na alta de preços, para beneficiar os consumidores, estabilizando o mercado. Mas regulação não é a mesma coisa que segurança, como o desastre do Rio Grande do Sul demonstra.

O governo preferiu adiar o gasto na reposição dos estoques, o que exigiria a importação de arroz, fortemente combatida pelo agronegócio, pelo seu efeito inevitável de segurar os preços. Não tenho dúvida que o agronegócio rizicultor vai se opor à decisão de importar um milhão de toneladas, anunciada hoje por Lula. períodos de carência de oferta, como o atual, são uma ótima oportunidade de lucro para quem tem arroz para vender. E se as perdas estimadas estiverem subavaliadas, a importação talvez tenha que ser o dobro da anunciada.

Finalmente, é preciso pensar no médio e longo prazo. A crise climática, negada sempre pelo agronegócio e seus representantes no Congresso, em governos estaduais (inclusive o do RGS), assembleias legislativas e prefeituras, veio para ficar. Não só isso, mas a tendência de eventos climáticos extremos está anunciada pelo IPCC há décadas. Uma rápida olhada nas notícias internacionais comprova a globalização da crise climática, com chuvas torrenciais ocorrendo na Ásia, enquanto na África é a seca que vem afetando a produção em vários países.

O clima faz estragos espantosos, mas não é uma fatalidade. A instabilidade climática tem origem no aquecimento global e os grandes emissores de gases de efeito estufa são os combustíveis fósseis, o desmatamento e queimadas e as emissões da agricultura empresarial. Não é um privilégio deste governo a proposta de aumentar a extração e o consumo de derivados do petróleo, mas estamos entre os maiores emissores de GEE por desmatamento (que diminuiu ano passado na Amazônia, mas aumentou muito no Cerrado) e, sobretudo, pelas queimadas, que bateram recordes em todos os biomas. Controlar as emissões de GEE é um imperativo para enfrentar a instabilidade climática e temos que cumprir a nossa parte no esforço mundial pela sobrevivência do planeta.

Finalmente, as inundações do RGS não se deveram apenas às chuvas torrenciais, mas também a ações do agronegócio gaúcho e do seu governo, alterando normas e leis ambientais do Estado para eliminar as matas ciliares que poderiam ter tido um papel de tampão natural para as inundações, pelo menos em parte. O mesmo se pode dizer do desleixo do governo gaúcho com o sistema de controle de enchentes já implantado no Estado há décadas e um dos mais bem concebidos do mundo. Comportas, barreiras e diques ficaram sem manutenção e desabaram com a pressão das águas. 

Jean Marc von der Weid

Ex-Presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

Quando a ideologia capitalista é a matriz de gestores.

Francisco Celso Calmon

Um é a favor do desemprego, a outra é a favor de que os aposentados do INSS recebam a cada ano menos valor real da aposentadoria.

Ambos minam o governo lula para descumprir suas promessas de campanha.

Ambos são filiados à ideologia capitalista, na qual manter um exército de desempregados é regra para que os trabalhadores saibam que existem outros à espera dos seus postos de trabalho e tenham menos força de negociação para aumentos de salários. 

Prejudicar os aposentados é outra regra, pois, para o capital é mão de obra inservível, já venderam as suas forças de trabalho por décadas, já engordaram o capital, através da mais valia, o suficiente para serem descartados.  

Num momento de tragédia ambiental e humana, a manutenção da Selic elevada e levantar a velha cantilena do déficit da previdência social, não é só desumano, mas também politicamente inoportuno e sem respaldo técnico. 

Por que não apresentar um cardápio para tirar de quem tem sobrando e especulando?  Por que não estipular um imposto de guerra por pelo menos três meses sobre os que ganham mais de vinte salários mínimos? Por que não repensar na volta da CPMF (melhorada)? Por que sempre penalizar os pobres e nunca os demasiadamente enricados?

No cardápio da Simone Tebet faltará para os aposentados a picanha e a cervejinha prometidas pelo Lula, e as restrições serão num crescendo, pois quer desvincular para sempre o aumento real dos aposentados, a sua proposta é a precariedade crescente sobre os idosos Os aposentados contribuíram sobre o valor do salário real, agora propõe reverter a regra. 

Quanto aos juros, argumentos técnicos e de gestão não mudam o papel do representante dos rentistas e bolsonarista raiz, Bob Neto, que sabota abertamente à economia nacional e o governo do presidente Lula. 

Ambos com suas propostas e medidas querem a manutenção do desemprego e da fome.

Metas de inflação, de parâmetros de gastos da saúde e da educação, desconexadas de metas positivas, consoante à Constituição Federal, agridem frontalmente o artigo terceiro da Carta Magna.

É mister que haja metas prioritárias do bem comum: emprego, salário, saúde, educação e assistência social, dignos, como é o mandamento constitucional. 

A presidente do PT, sempre alerta, já se postou contra ambos e suas posições. E os demais partidos de esquerda, e as centrais sindicais e os movimentos sociais?

Estudantes brasileiros ainda letárgicos na luta contra a guerra genocida aos palestinos, sindicatos esqueceram de como mobilizam os trabalhadores, os culpados clamando para não procurarem os culpados, a mídia direitista com a bandeira inócua da não politização.

Solidariedade não é passividade e nem imobilidade quanto às causas e seus responsáveis.

Tudo é política, tudo dever ser politizado. Afinal, fora da política é a barbárie.

Francisco Celso Calmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.

À brava gente estudantil!

Francisco Celso Calmon

Mais uma vez na história são os estudantes que tomam a dianteira na luta contra o sistema beligerante, contra a guerra, contra a mortandade genocida, e pela paz. 

As juventudes do Canadá, França, México, Austrália, Irlanda e Suíça, em meio a uma repressão aos estudantes nos Estados Unidos e ao número crescente de mortes na guerra de Israel em Gaza, se manifestam pelo fim do genocídio e pela criação do Estado Palestino.

Isso nos remete às manifestações contra a guerra do Vietnã, quando 60 mil protestaram, no parque central de Nova York, em abril 1968, para pedir paz e o fim da guerra.

A repressão à época ampliou o rastilho e o pavio foi aceso.

Manifestações antiguerra atraíram um número crescente de manifestantes em todo o mundo, e o auge internacional foi no ano de 1968.

A repressão aumentou e os protestos também. 

A guerra do Vietnã foi a primeira guerra televisada. 

“Em 1966 foi estimado pelos órgãos do EUA que 93% das famílias americanas assistiam os horrores da guerra. O público viu, por exemplo, quase em tempo real, que os vietcongues eram capazes de infligir derrotas às tropas americanas, e as famílias assistiam no sofá de sua casa.

 A partir de 1968, a cobertura foi amplamente desfavorável à guerra – imagens de civis inocentes sendo mortos, mutilados e torturados foram exibidas na TV e nos jornais e muitos americanos ficaram horrorizados e se voltaram contra a guerra.  Um enorme movimento de protesto surgiu com grandes eventos em todo o país. Em uma dessas manifestações, em 4 de maio de 1970, quatro manifestantes estudantis pacíficos na Kent State University em Ohio (EUA) foram mortos a tiros por guardas nacionais. O Massacre do Estado de Kent fez com que mais pessoas se voltassem contra a guerra. 

Os EUA perderam a batalha da aprovação pública à guerra do Vietnã”. (Recortes).

 Em 1973 os EUA abandonaram o teatro de operações no Vietnã e deixaram o Vietnã do Sul a própria sorte, e não durou muito para capitular, abril de 1975.

As manifestações contra guerra são associadas internamente pelos cidadãos estadunidenses àquelas ocorridas nos Estados Unidos, pelo fim da Guerra do Vietnã e pela paz mundial.

Parecem repetir o script: intolerância, repressão e censura, e isso num país que se gaba de ser democrático.

A juventude estudantil brasileira ainda não saiu em solidariedade e se associar ao movimento pela paz e pela criação do Estado Palestino.

Deveria engrossar o movimento que se avizinha mundial, antes que a extrema-direita e a Globo se apropriem e deformem como fizeram em 2013. 

O marasmo político das ruas e do movimento estudantil pode ser superado e produzir uma dinâmica em 2024, como fizemos em 1968, o ano que não terminou.

E a hora e vez da UBES, AMES, UNE, DCES, assumirem o protagonismo do destino da atual e da futura geração.

Francisco Celso Calmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.

Alvíssaras à justiça de transição.

Francisco Celso Calmon

A retomada da Comissão Especial de Mortos e Desparecidos Políticos é mais um passo para a implementação da justiça de transição, embora com comprometedor atraso. Para minimizar um pouco é necessário compor a Comissão com quem acalenta experiência e memória do trabalhado realizado, portanto, Eugênia Gonzaga deve ser convidada para coordenar os trabalhados.

Não é suficiente recriar e a compor com quadros competentes e comprometidos com a pauta memória, verdade, justiça e reformas, é necessário dotá-la dos recursos materiais necessários ao desempenho do seu mister.

A escassez de recursos da Comissão de Anistia é alerta para o retorno da CEMDP.

Os desparecidos e mortos já se levantaram algumas vezes através de seus familiares e não foram atendidos em seus pleitos: saber onde foram enterrados, resgaste dos seus restos mortais, tempo para curtir o luto com todas as honras e reverências aos heróis da democracia, a criminalização dos agentes responsáveis pelos crimes de tortura, homicídio e ocultação de cadáver, e reparação moral e pecuniário aos familiares. 

Para além e não singular aos familiares e sim para toda a sociedade e para o Estado democrático de direito, reformas que impeçam a repetição de barbáries como as ocorridas durante a ditadura militar.

Não se resolve somente com programas de formação de direitos humanos para os militares e policiais, a punição é imprescindível para quebrar a cadeia histórica da impunidade e, sobretudo, por obediência constitucional, proibir as forças armadas de participarem ou mesmo se imiscuírem na política.

Para tanto, consoante ao Manifesto Pela Justiça de Transição da  Rede Brasil – Memória Verdade, Justiça, subscrito por 22 entidades, neste espaço em 07 de dezembro de 2022  (https://jornalggn.com.br/direitos-humanos/entidades-lancam-manifesto-pela-justica-de-transicao)*, ratificamos a proposta de criação de uma Comissão Estatal Permanente de Memória e Reparação (CEPMR). 

O alcance da memória e reparação a que essa Comissão estará encarregada deverá abranger os períodos traumáticos da história do Brasil – a escravidão dos indígenas e dos negros, as ditaduras do Estado Novo e a militar de 21 anos, e os mais recentes, o genocídio bolsonarista e a intentona da extrema direita de 8 de janeiro de 2023.

A composição sugerida da CEPMR é de no mínimo 8 (oito) membros, com mandato de cinco anos, renováveis.  Representante do Executivo (Ministério dos Direitos Humanos), do Legislativo (Comissão de DH da Câmara), do MPF (idem), da Defensoria Pública Federal (idem) e da sociedade civil (movimentos dos indígenas, dos negros, dos anistiados, e dos filhos e netos dos ex-prisioneiros das ditaduras). 

As lembranças periódicas não são somente uma homenagem às suas vítimas, mas, sobretudo, para a humanidade não esquecer do que em seu nome já foram capazes de fazer e impedir a repetição. 

Uma nação sem memória, é uma nação com o DNA da impunidade e à deriva.

A conjuntura atual, de ampla conciliação governamental, não deve ser, porém, a ditadura da amnésia do passado.

A Justiça de Transição é a ponte segura para a construção de uma democracia sustentável.

Só teme o passado quem tem contas a ajustar com a justiça.

Quando se acredita numa ideia, num ideal, não se luta somente numa conjuntura, mas por toda a vida.

* https://www.holofotenoticias.com.br/?post_type=post&s=entidades+de+direitos+humanos+querem+que+governo+instale+comiss%C3%A3o+permanente+

Francisco Celso Calmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.

REQUIÃO, CIRO e ALDO

Dilermando Toni – 04/2024

Amiúdam-se as críticas ao governo Lula partindo de quadros com grande experiência na vida pública e que em outras ocasiões estiveram apoiando e participando do projeto encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores, projeto esse que atualmente navega com uma frente amplíssima, bastante heterogênea, da esquerda – onde está o PCdoB – à direita, com o objetivo da Reconstrução e Transformação do Brasil. Em um quadro de imensas dificuldades, após quase um ano e meio de vida, no qual a extrema direita derrotada nas urnas por margem apertada de votos mantem-se ativa tendo como base um Congresso Nacional de feição extremamente conservadora.

Requião, Ciro e Aldo têm tomado posições que os colocam longe ou mesmo em oposição ao governo. Pela envergadura política desses homens, pela sua origem e trajetória é bom prestar-lhes atenção e examinar criticamente suas opiniões. Na condição de mero observador da cena brasileira arrisco aqui alguns palpites.

Roberto Requião foi três vezes governador do importante estado do Paraná, duas vezes senador da República fez toda a sua carreira política no MDB, integrando uma ala arejada chamada de MDB Velho de Guerra. Antes do pleito presidencial de 2022, devido à polarização entre as forças progressistas e a ultradireita bolsonarista, optou por entrar no PT, tendo sido peça importante da campanha vitoriosa de Lula. Sua trajetória é marcada pela crítica acerba ao neoliberalismo e à oligarquia financeira, em defesa do Estado nacional e do desenvolvimento soberano.

Ciro Gomes foi governador do Ceará, prefeito de sua capital, deputado estadual e federal, além de ministro de estado. Foi quatro vezes candidato a presidente da República, passou por vários partidos políticos e hoje está no PDT. As gestões de Ciro estiveram em consonância com os interesses nacionais e populares tendo por isso alcançado alto prestígio em sua terra. Nas duas últimas vezes em que concorreu a presidente Ciro se colocou em oposição à candidatura Lula tentando criar uma terceira via e se dizendo portador único de um projeto de desenvolvimento nacional que estaria ausente das propostas da Federação Brasil da Esperança – PT, PCdoB e PV.

Aldo Rebelo esteve até anos recentes filiado do PCdoB, presente nos altos escalões da direção partidária. Foi presidente da UNE, vereador na capital de São Paulo e deputado federal por cinco mandatos representando aquele Estado. Foi ministro do Estado nos governos Lula e Dilma e também presidente da Câmara dos Deputados em cuja condição teve importante papel da defesa do mandato de Lula. Como deputado seu mandato ficou marcado por ter sido relator do polêmico Código Florestal e como ministro por ter se transformado em embandeirado defensor das Forças Armadas brasileiras. Em 2017 acabou por romper com o partido dos comunistas, e iniciou uma peregrinação por outras siglas estando atualmente filiado ao MDB, engajado no projeto político do atual prefeito de São Paulo, exercendo o cargo de secretário de relações internacionais da prefeitura.

Requião em entrevista recente a AEPET TV anunciou sua saída do PT avaliando que o governo tomou uma feição de centro-direita conduzindo uma política econômica que não teria diferenças essenciais com a política liberal anterior de Paulo Guedes, fortemente submetida aos banqueiros e ao pagamento da dívida pública através de juros escorchantes estabelecidos pelo Banco Central independente. Diz-se profundamente contrariado com a regressão da orientação adotada para a Petrobras – atualmente controlada por fundos de investimentos estrangeiros – na distribuição de dividendos que estaria minando a capacidade de investimentos da empresa. Constata a queda do prestígio do PT e do arranjo político que lhe dá base prevendo que nas próximas eleições presidenciais a direita neoliberal poderá ser vitoriosa, com alguém tipo um Javier Milei brasileiro, diz ele. Conclama, pela esquerda, a uma mudança dos rumos adotados até aqui com a ruptura com o liberalismo econômico. Por fim diz que está em busca de uma alternativa organizativa com a qual possa desenvolver suas ideias e projetos. Diz querer mais do que o governo vem fazendo só não diz concretamente como enfrentar na prática desafios tão grandiosos.

Ciro com a acidez que acompanha seu raciocínio atilado, conhecedor da realidade econômica do país e dominando o funcionamento de suas instituições econômicas e políticas não faz propriamente críticas, mas ataques e denúncias que vão do econômico, passam pelo arcabouço institucional do país, até os costumes, colocando-se em oposição frontal ao governo federal. Isso é o que se pode extrair da longa entrevista que concedeu a Jovem Pan nos finais de março. O PT (“com seus puxadinhos”) e Lula são seus alvos prioritários. Culpa-os por todos os males que afligem o Brasil atualmente. Vê o dedo do PT na expansão das milícias e do crime organizado das facções criminosas, na conivência com a independência do Banco Central e seu atual presidente, no pagamento de R$ 728 bilhões em 2023 aos donos das finanças e do capital especulativo. Diz-se mais livre para falar o que quiser por não ter mais pretensões eleitorais e fala de um acordo (esdrúxulo) que fez no PDT: ele, na condição vice-presidente em oposição visceral enquanto o presidente licenciado do partido exerce o cargo de ministro do governo. Faz também críticas contundentes sobre a situação de seu estado, o Ceará e uma avaliação extremamente pessimista para o próximo pleito municipal prevendo uma derrota contundente do PT e do restante da esquerda em todo o Brasil. Ciro não junta Lé com Cré. Hoje é um livre atirador que, com a aproximação das eleições municipais, vem ganhando espaço na mídia.

Aldo protagoniza uma mudança de campo. Da esquerda passando pelo centro e agora nos braços da direita. Suas críticas situam-se no terreno político, exatamente naquilo em que o governo Lula e o Supremo Tribunal Federal têm de mais importante, a defesa da democracia. Assim, Rebelo avalia que os acontecimentos de 8 de janeiro quando foram feitos ataques e depredações às sedes do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto, não configuraram uma tentativa de golpe de Estado. Disse ao InfoMoney agora no mês de abril que “os acontecimentos do dia 8 de janeiro de 2023 não podem ser caracterizados como uma tentativa de golpe de Estado.” Afirma que Bolsonaro está sendo vítima de casuísmos jurídicos, que ele chama de artifícios, para afastá-lo da vida pública. Ao mesmo tempo afirma, como opositor, que Lula não tem capacidade para governar com base em alianças heterogêneas responsabilizando-o pelas dificuldades de construir o apoio da maioria do Congresso Nacional. Na questão da disputa para a prefeitura de São Paulo na qual está engajado, diz que a cidade precisa de uma administração feita por forças heterogêneas como a atual e que o candidato Boulos do PSOL, que conta com o apoio do PT, do PCdoB, do PDT entre outros, protagonizou recentemente um movimento de sabotagem contra o Brasil. Na essência renega seu passado, embora se julgue coerente. Esconde-se atrás do combate ao identitarismo para dizer que o PCdoB não é mais um partido de esquerda, pois teria abandonado as bandeiras de defesa da soberania nacional. Assume uma feição de nacionalista de direita ao encarar as bandeiras nacionais totalmente autonomizadas das reivindicações dos movimentos sociais. Esse é o novo Aldo Rebelo que já nasce velho, conservador, anti-esquerda.

Desses três personagens em questão somente Requião se mantem no campo da crítica, sem fazer uma oposição ao governo, mas chama a uma mudança de rumos. Ciro e Aldo colocam-se no campo da oposição, Ciro aberta e ferozmente, Aldo com um manso disfarce. Aldo é o que faz o movimento mais profundo, da esquerda à direita, engajado em um projeto conservador.

Como é de costume acontecer em casos deste tipo todos se acham coerentes e levantam críticas algumas das quais têm base real. O problema central é que por esse mecanismo de unilateralidade desconhecem ou encobrem a questão crucial, o ponto forte e fundamental do governo de Lula, a defesa intransigente da democracia. Nesse terreno o governo tem conquistado vitórias importantes sobretudo quando desmascara as gravíssimas manobras golpistas perpetradas por Bolsonaro et caterva.

Nem uma palavra também quanto a importantíssima linha da política internacional adotada pelo governo, alinhada aos Brics e à construção de uma ordem multipolar de paz e desenvolvimento das nações. Ou ainda quanto aos avanços na área da Ciência e Tecnologia. Como se pode fazer uma análise crível sem abordar esses assuntos?

A realidade deve ser encarada no seu conjunto sem desconhecer, porém, os impasses que prendem o governo: propondo mudanças e transformações pode se isolar no Congresso nacional de maioria conservadora, de direita e de extrema direita. Não propondo, tende a se isolar do povo. Pelo menos três pesquisas recentes mostram igualmente uma certa queda na avaliação positiva do governo e do presidente. Então como seria possível avançar com uma correlação de forças desfavorável?

Diante das dificuldades e das pressões constantes do Centrão, Lula para se equilibrar e foi fazendo sucessivamente ajustes no governo que acabaram por dar-lhe um caráter mais centrista. Mas isto tem que ser visto tanto pela composição ministerial como pelos programas que o governo luta por implementar. Essa não é, portanto, a mesma opinião de Requião nem de José Dirceu que com ele concordou. Além da correlação de forças desfavorável deve-se ter em conta que o PT como um partido democrático, reformista tende naturalmente à conciliação menosprezando a importância da mobilização social, nas praças e nas ruas, para que se conquistem vitórias. Tem ainda um amplo apoio popular, mas se distanciou muito das bases.

O que os setores mais consequentes da esquerda devem insistir em fazer em uma situação como essa? Eles devem preservar os aspectos positivos do governo, sua característica principal. Há que se fazer críticas sim, porém construtivas, visando fortalecer as propostas mudancistas.

*Frente Ampla e fortalecimento do núcleo da esquerda buscando aprofundar o caráter democrático do governo tendo como alvo a ultra-direita bolsonarista e a neutralização dos setores conservadores. Trabalhar com essa orientação política nas eleições municipais que se aproximam afim de acumular forças para 2026;

*Insistir na mobilização popular como única forma possível para sair do impasse. Aos partidos de esquerda e suas principais lideranças cabe mobilizar o povo, e não exclusivamente ao movimento sindical e popular. Isso poderia ser sintetizado na consigna Vamos pra rua com Lula!;

*Adotar bandeiras econômicas e sociais que permitam a retomada imediata do desenvolvimento com base no investimento público e privado, bem como a melhoria das condições de vida da população tais como renegociação dos prazos e volumes de vencimento dos juros da dívida pública visando mudar imediatamente seu perfil, fortalecimento do caráter público da Petrobras, reestatização da Br Distribuidora, das refinarias da Petrobras e da Eletrobras. Política de preços dos combustíveis baseada no mercado interno, no interesse nacional. Afastamento do presidente neoliberal do Banco Central e adoção outra política de juros, baixos, que se coadune com o objetivo do desenvolvimento nacional. Taxação da renda dos superricos tanto dos lucros como dos dividendos. Isenção do IR para as camadas mais pobres. Política de reajustes do salário-mínimo para trazer melhoria substancial na renda dos trabalhadores e aposentados, de acordo com as propostas do movimento sindical. Medidas efetivas de Reforma Agrária de acordo com as reivindicações dos movimentos de trabalhadores pela terra;

*Azeitar o sistema de comunicação para que as conquistas efetivadas possam chegar ao conhecimento de amplas parcelas da população.

Dilermando  Toni

Jornalista, ex-editor do jornal A Classe Operária, membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz,

O Programa Brasil Sem Fome (PBSF)

Jean Marc von der Weid

Introdução: a soma das partes não faz, necessariamente, um todo

Governos, de todas as cores, têm a mania de formular grandes programas através do artifício de reunir ações públicas em curso, espalhadas em vários ministérios, sob um “chapéu” novo e uma boa dose de publicidade.

Pelo que pude deduzir lendo as 4 páginas (em letras miudinhas) do decreto do presidente Lula em dezembro de 2023, instituindo a Política Nacional de Abastecimento Alimentar e dispondo sobre o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar e as 50 páginas do Plano Brasil Sem Fome (PBSF), estamos diante de um repeteco desta abordagem.

Da elaboração do PBSF participaram 22 ministérios, a Secretaría Geral da Presidência e a Casa Civil, representados por 127 gestores e técnicos depois de 40 reuniões, inclusive com dezenas de interlocutores da sociedade civil. O PBSF se organiza em três eixos e em cada um deles apresenta vários desafios e as atividades a serem promovidas (financiadas) por múltiplos entes do governo. Em cada um dos eixos e desafios encontramos elementos de análise que buscam justificar as propostas de ação.

Não vou analisar a proposta do PBSF em detalhe, o que seria cansativo e provavelmente inócuo, mas quero apontar para algumas carências cruciais neste planejamento.

Quais as causas da crise alimentar brasileira apontadas no PBSF?

O PBSF não apresentou nenhuma análise de fundo sobre as causas da presente crise agroalimentar nacional. O fato de que as centenas de técnicos e responsáveis governamentais e da sociedade civil implicados neste planejamento têm grandes diferenças políticas e de entendimento do problema pode ter sido o fator inibidor de um exercício de diagnóstico aprofundado.

Poderíamos resumir a análise em uma única frase:  o PBSF considera que os governos de Lula e de Dilma estavam resolvendo o problema da fome no Brasil com as políticas de aumentos reais do salário-mínimo e o Bolsa Família. A “prova” é o fato de que a FAO retirou o Brasil do mapa da Fome. A crise atual é causada pelos governos de Temer e de Bolsonaro que deixaram um legado de 33 milhões de famintos (insegurança alimentar grave), além de 90 milhões em situação de insegurança alimentar moderada (Rede PENSAN).

O PBSF não avaliou as variações dos valores reais dos auxílios, quer por correções feitas pelos programas, quer pelas perdas provocadas pela inflação dos alimentos.

Quando criado, o Bolsa Família pagou um valor médio de 73 reais e suas correções chegaram a um valor de quase 200,00 reais em 2018, mas se tivesse acompanhado a inflação geral teria que pagar 50,00 reais a mais.. Se a correção fosse pela inflação dos alimentos esta perda seria de cerca de 100,00 reais. O governo Bolsonaro congelou os pagamentos do BF até a criação do “seu” programa, chamado de Auxílio Brasil, em dezembro de 2021. O AB pagou, inicialmente, 400,00 reais por família, ampliados para 600,00 em agosto, às vésperas das eleições. No começo da pandemia o Congresso Nacional criou o Auxílio Emergencial, distribuindo 600,00 reais por mês por família.

Usando como parâmetro a relação dos aportes dos programas com o salário-mínimo, o BF pagou, em média, 42% e o AB, no seu valor mais alto, pago por 4 meses, 50%. No início do BF, em 2004, o auxílio pagava uma cesta básica, mas com o tempo e a inflação dos alimentos foi perdendo poder de compra. Nada disso foi discutido no PBSF, nem feita nenhuma reavaliação dos valores necessários para garantir uma dieta apropriada para as famílias beneficiárias.

Um diagnóstico mais preciso indicaria as causas da situação de insegurança alimentar dos diversos segmentos deste público diferenciado, os 127 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar grave ou moderada. Seria muito importante para pensar o futuro entender por que, por exemplo, encontramos um grande número de domicílios de agricultores familiares (21,8% ou 850 mil) que estão em situação de IAGrave. Parece paradoxal que pessoas dedicadas à produção de alimentos sejam famintas, mas tudo tem explicação que necessita de ser apontada.

O jornal O Globo de 20/4/2024 divulgou os resultados de pesquisa do IBGE e as conclusões da Fundação Getúlio Vargas para as variações na distribuição de renda, apontando para uma redução do número de pessoas em extrema pobreza da ordem de 11,6 milhões em relação ao ano de 2021. Mas quem lê a matéria tende a concluir que ela indica uma forte redução no número de famintos, resultado da confusão induzida pela reportagem, que introduz os números encontrados na pesquisa da Rede PENSSAN para o ano de 2021, 33 milhões.

Desde logo, não há convergencia nos números da pesquisa da Rede e os dados do IBGE. Por estes últimos, o número de pessoas em extrema pobreza em 2021 (data da pesquisa da Rede) era de 28,7 milhões. Isto se explica por diferenças de objeto das duas pesquisas, o que o artigo confunde. Um estudou indicadores de insegurança alimentar e o outro o nível de renda. Embora as pessoas em situação de extrema pobreza certamente estarão entre os famintos, muitos que não se encontram entre os primeiros podem estar entre os segundos. A melhoria da renda, efeito dos auxílios (Brasil e Bolsa Família) e, neste governo, a recuperação do emprego e a valorização do salário-mínimo não garante a melhoria da situação alimentar. O endividamento de mais da metade das famílias brasileiras, efeito da pandemia, do desemprego e da precarização do trabalho no governo Bolsonaro, estava elevadíssimo no início de 2023 e parte do recurso dos auxílios foi consumida em pagamentos de atrazados.Vai ser preciso esperar uma nova pesquisa da Rede para podermos ter uma ideia mais precisa do tamanho dos vários públicos alvo do PBSF, os famintos, os subnutridos e os malnutridos.

Quais as metas definidas para o PBSF?

Embora falhando no quesito diagnóstico de causalidade, o preâmbulo do PBSF apresentou, de forma às vezes contraditória ou incoerente, um quadro da situação de insegurança alimentar grave e moderada. Este apanhado está suficientemente detalhado para que o PSBF pudesse ter definido um conjunto de prioridades e metas a serem alcançadas, coisa que o documento não mostrou, a não ser de forma genérica:

– Tirar o Brasil do Mapa da Fome da FAO (aqui há uma meta implícita, de aumentar a ingestão calórica até o mínimo básico, dirigida a 33 milhões de famintos).

– Reduzir a insegurança alimentar e nutricional, em particular a insegurança alimentar grave. (quanto?).

-Reduzir ano a ano as taxas de pobreza da população. (qual a redução total ambicionada?)

Na primeira meta, é preciso ficar claro o que é o Mapa da Fome da FAO. Este Mapa inclui apenas as pessoas que têm uma ingestão calórica diária menor do que a indicada como vital pelos nutricionistas, em média 2100 calorias. É notório, no entanto, que muitos dos que ingerem este mínimo vital podem ser carentes em outros quesitos, em particular as proteínas. Ou seja, ingerir calorias acima do mínimo vital não significa que tenha sido superada a insegurança alimentar grave.

Talvez por isso a segunda meta tenha sido colocada, visando uma dieta mais adequada e isto fica reforçado pela definição de uma nova cesta básica mais equilibrada. Preocupa-me esta divisão em duas metas distintas, quando existe uma forte tendência no Brasil da adoção de dietas ultracalóricas e pobres em proteínas, sais minerais e vitaminas. Existe uma parcela do público, não quantificada até agora de forma precisa, que padece de insuficiência proteica e de micronutrientes e que sofre, simultaneamente, de obesidade ou excesso de peso por ingestão exagerada de calorias. Ter como meta primeira ampliar a ingestão calórica dos famintos só reforça este grave estado nutricional dos mais pobres.

Pelos próprios dados apresentados, seria possível e muito necessário que se afirmassem as seguintes prioridades:

– Atacar em primeiro lugar a insegurança alimentar grave, visando não apenas a ingestão calórica, mas uma dieta mais balanceada do ponto de vista nutricional.

Não sabemos com segurança quantos são estes mais desvalidos. Segundo o inquérito da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSAN) de 2022, 33 milhões de pessoas passavam fome. Já o relatório da FAO de 2023, usando critérios diferentes, apontou para a existência de 21,1 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar grave (IAGrave). Estes números tão discrepantes, citados no preâmbulo do PBSF, com uma diferença no número de famintos da ordem de 30%, tornam urgente uma análise que permita adotar uma avaliação consistente para balizar as metas do programa.

– Priorizar os famintos rurais, 6 milhões de pessoas,18,2% do público-alvo prioritário total (PENSAN) ou 3,8 milhões, também 18% (FAO).

– Priorizar os famintos das regiões norte e nordeste, 4,8 e 12,1 milhões de pessoas ou 14,5 e 36,7% do total (Rede PENSAN), ou 3,045 e 7,7 milhões (FAO) em particular os rurais (cruzando com os dados do item anterior).

– Priorizar populações particularmente vulneráveis como indígenas, quilombolas, acampados e assentados da reforma agrária, urbanos em situação de rua, buscando colocar números nestes distintos públicos e sua localização, de forma a poder planejar concretamente as atividades e seus custos.

– Priorizar beneficiários do Bolsa Família, sobretudo famílias chefiadas por mulheres e com muitos filhos em zonas rurais e urbanas. Idem.

São muitas as metas que podemos classificar como prioridades de segundo nível e que se dirigem aos famintos de várias categorias de outras grandes regiões (Sudeste, Sul e Centro-oeste), lembrando que nestes casos a predominância de urbanos é muito maior, em números absolutos e em percentual. E um terceiro nível de prioridade seria o da população em situação de segurança alimentar moderada, a exigir uma pesquisa mais detalhada para poder ser corretamente identificada e quantificada.

A questão da renda mínima

Analisando o primeiro dos eixos definidos no PBSF, o “acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania” encontramos elementos já bem colocados desde a instituição do Bolsa Família. Desemprego e baixa renda são indicadores que caíram durante os governos populares, começando uma reversão no segundo governo da presidente Dilma para se agravarem nos dois governos seguintes.

É preciso lembrar que a melhoria de emprego e renda ocorrida desde o governo de FHC e ampliada nos governos populares, não teve um efeito significativo na melhoria da dieta dos mais pobres, embora tenha melhorado a ingestão calórica. Isto se explica por dois fatores importantes: o primeiro é que os gastos das famílias não são definidos apenas pelas necessidades da compra de alimentos. Gastos essenciais, como aluguéis, transportes, saúde, educação, energia, vestuário e comunicação, competem com os gastos em alimentos.

Apesar dos progressos na renda dos mais pobres, estes outros gastos empurram as famílias a despender o mínimo possível com a alimentação e isto significa a adoção de dietas mais baratas e que são mais pobres do ponto de vista nutricional. De fato, o Bolsa Família tornou-se um programa de renda mínima e não um programa de alimentação, no sentido mais estrito. E como programa de renda mínima ele distribui valores complementares à renda familiar insuficientes para cobrir o conjunto das necessidades básicas das famílias, levando ao sacrifício da qualidade alimentar.

Centrar o enfrentamento da questão da insegurança alimentar e nutricional na distribuição de recursos financeiros implicaria em aumentar muito os valores deste aporte e, ainda assim, não seria bem-sucedido se não for aumentada a oferta de alimentos adequados em quantidade, qualidade e preços acessíveis.

A questão da oferta de alimentos

Com estas observações, chegamos ao ponto crucial do PBSF, o segundo eixo: “segurança alimentar e nutricional – alimentação saudável da produção ao consumo”.

Em primeiro lugar, é preciso entender a dinâmica do mercado que define os preços da cesta básica, aquela definida em 1937 no governo Vargas ou a nova cesta, definida em 2024 no governo Lula.

O decreto que instituiu a nova cesta não acompanhou o de Vargas na quantificação desejável do consumo de cada produto, o que torna impossível calcular os custos de uma alimentação saudável indicada por ele, assim como qual o aumento da oferta de alimentos que seria necessário para atender a uma demanda expandida.

O governo Lula está propondo a isenção de impostos para uma parte dos itens da cesta, enquanto outros teriam reduções de 40%. Mesmo sem a indicação quantitativa do consumo alimentar e nutricional desejável, é evidente que o custo da nova cesta será maior do que a atual. Em artigo anterior utilizei um estudo do Instituto de Medicina Social da UERJ, que foi mais longe e definiu uma dieta “correta” em qualidade e quantidades de cada produto, chegando (com preços atualizados pela inflação de alimentos) a valores próximos de 1400,00 reais mensais para uma família de dois adultos e duas crianças.

Como a nova cesta não vai alterar a base de cálculo do salário-mínimo, haverá um déficit na capacidade de compra de alimento das famílias. Na verdade, este déficit já existe, mesmo usando o custo mais baixo da cesta tradicional. Para comprar a cesta indicada no decreto de 1937 a família teria de comprometer 57% do salário-mínimo, o que é inviável dadas as outras despesas necessárias. Já o custo da cesta básica desejável, calculado pela UERJ, consumiria a totalidade do atual salário mínimo.

Desonerar os produtos da cesta básica é algo que já foi feito no governo de Dilma, sendo aplicado sobre a cesta tradicional. O efeito sobre o consumo alimentar das famílias não foi significativo, sobretudo porque os preços dos alimentos aumentaram mais do que as desonerações.

Tudo isto indica que não basta indicar uma cesta alimentar ideal, mesmo se quantificada, se os valores da renda dos mais pobres não cobrem os custos, alimentares e outros. Pode-se pensar, e parece que é o caso dos técnicos do governo, que os recursos do Bolsa Família cobririam estas diferenças entre a renda auferida e o custo da alimentação. Não foi o caso no modelo do BF nos governos populares entre 2004 e 2016, nem no programa equivalente definido pelo Congresso em 2020, que elevou os valores distribuídos em 300%.

Alguns analistas explicam este processo a partir da dinâmica dos preços dos produtos básicos, quase sempre acima e muitas vezes o dobro da inflação média da economia. E isto nos leva a nos perguntar por que isto acontece.

Existem dois fatores pressionando os preços dos alimentos para cima de forma persistente. Por um lado, houve um processo de capitalização da produção de alimentos básicos como feijão, arroz, trigo e milho. O modelo adotado pelo agronegócio (e pelo “agronegocinho” da agricultura familiar) implica em custos mais altos pelo uso de adubos químicos, sementes melhoradas, agrotóxicos e maquinário (com custos menores com mão de obra). Teoricamente, esta modernização levaria a uma queda nos preços unitários dos produtos, em função de um esperado aumento no rendimento das culturas. Acontece que, depois de um salto inicial nos rendimentos, estes estagnaram e cobraram maior uso de insumos para sua manutenção. E o custo destes insumos não parou de crescer, aqui ou no resto do mundo, sobretudo pelas maiores dificuldades de se conseguir matéria prima para energia, adubos e agrotóxicos. A instabilidade climática, com secas e inundações cada vez mais frequentes e intensas, também ajudou a derrubar os rendimentos destas culturas alimentares (e de todas as outras, é claro).

Mas o efeito mais importante na redução da oferta de alimentos básicos no Brasil está em outra causa: a diminuição da área cultivada de forma sistemática. Este fator tem como raiz a competição entre os produtos alimentares e as commodities de exportação. Os mercados internacionais de soja, milho, açúcar e carnes (entre outros) são mais atraentes para os produtores do agronegócio do que o mercado interno de produtos alimentares, sobretudo aqueles de consumo da massa de menor poder aquisitivo.

Por outro lado, os produtores familiares mais capitalizados, que até 1985 colocavam a maior parte dos produtos alimentares de base no mercado, deixaram de lado este foco e passaram a se dedicar, como os produtores do agronegócio, ao cultivo de commodities e à criação de gado. Hoje a contribuição da agricultura familiar para a produção de alimentos está, em valor, entorno de 25% enquanto o resto está nas mãos do agronegócio.

Esta mudança se explica pelo impacto das políticas de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar adotadas pelos governos de FHC, Lula e Dilma. O crédito facilitado e a assistência técnica, conduziram perto de 500 mil agricultores (12,5% do total) a adotarem o modelo produtivo dito moderno, com o uso intensivo de insumos e máquinas. Muitos (em um cálculo ainda estimativo, perto de 125 mil) quebraram e abandonaram o campo, mas os mais eficientes (ou mais bem dotados em termos de condições de produção) verificaram que era mais seguro e rentável produzir commodities do que alimentos de consumo de massa e muitos trocaram de foco.

E porque será que as commodities são mais atraentes do que arroz, feijão, milho, trigo e mandioca? Por óbvio, o mercado de alimentos está balizado pelo poder de compra da renda auferida pelas famílias consumidoras e essa renda sempre esteve aquém das necessidades, alimentares ou outras, das famílias mais pobres e até das remediadas.

Os preços mais altos dos alimentos de base, pressionados pelos custos de insumos e pelos impactos climáticos, levaram a um processo de mudança continua na dieta dos mais pobres e mesmo dos remediados. O arroz com feijão foi substituído pelo arroz com ovo, depois pela massa (trigo) com salsicha e depois pela bolacha, pão ou miojo (trigo) com salsicha.

É claro que estes são elementos simbólicos e ninguém come apenas estes produtos, mas o cerne da questão é que, sob pressão dos preços dos alimentos e da renda baixa, as famílias foram se adaptando a consumir os produtos de menor preço: os ultraprocessados, apesar de sua menor qualidade nutricional. A população mais pobre (os 60 milhões do programa BF) e os remediados (67 milhões) vai adotando uma dieta que se resume a “encher barriga”, implicando na pandemia de desnutrição, subnutrição e obesidade que nos assola e que incide no aumento exponencial de enfermidades como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.

Por outro lado, esta diminuição do consumo dos alimentos de base citados acima inibe a ampliação da produção, criando um círculo vicioso. O volume de produção de feijão e arroz, por exemplo, está estagnado há décadas, enquanto o consumo per capita vai caindo regularmente.

O desafio de aumentar a oferta de alimentos no Brasil é enorme. O PBSF coloca esta necessidade, mas não tenta quantificá-la. Sem metas de produção a proposta fica repetindo as políticas de incentivos do passado, sobretudo a ampliação do crédito, que não alcançaram os resultados esperados.

Qual seria o aumento necessário da produção de alimentos para atender à demanda de uma população corretamente nutrida?

A título de exercício demonstrativo, vamos analisar um dos produtos essenciais desta dieta desejável, pesquisada pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Calculei, em outro artigo, que o déficit da produção de feijões (preto, de cor ou fradinho) seria de 10 milhões de toneladas, sendo que a produção nacional estagnou em 3 milhões há muito tempo, equilibrado com a demanda do mercado. Ou seja, para suprir a demanda ideal (incrementada) dos consumidores nacionais a produção teria que quadruplicar, pelo menos. E quais tipos de produtores poderiam dar esta resposta maciça em termos de aumento de oferta?

A produção de feijões do agronegócio (CONAB, 21/22) chegou a 2.340.000 toneladas e a dos agricultores familiares tradicionais e dos capitalizados chegou a 659.000 toneladas, 78% e 22% respectivamente. Os primeiros colocaram 89% da sua produção no mercado e os segundos 55%, as diferenças se explicando pelo autoconsumo. O abastecimento do mercado nacional de feijão foi de 2,445 mil toneladas, sendo que 14,8% vieram da produção familiar e 85,2% da agricultura patronal.

Isto indica que o esforço do governo para quadruplicar a produção de feijões deveria estar centrada na categoria dos produtores do agronegócio, cerca de 309 mil agricultores. No entanto, apenas 6 mil agricultores, com área de propriedade entre 20 e mais de 500   hectares, respondem por cerca de 60% da produção atual. Cerca de 20 mil agricultores familiares capitalizados, com área de propriedade entre 5 e 100 hectares, seriam um alvo secundário. Cerca de 1,2 milhão de agricultores familiares tradicionais com área de propriedade entre zero e cinco hectares seriam um alvo terciário, se levarmos em conta como critério apenas o potencial de oferta ampliada de feijão necessária para atender a demanda de uma dieta correta para todos os brasileiros.

Mais do que triplicar a produção dos feijões pode ser conseguido de três maneiras:

– Aumentando o rendimento da cultura de feijão.

Os produtores tradicionais de feijão, de tipo familiar e não capitalizado, obtiveram rendimentos de 650 a 850 quilogramas por hectare. Já os produtores modernizados, os grandes e médios empresários do agronegócio chegaram a 1200 kg/ha, em média. No entanto, os produtores de Goiás e de São Paulo alcançaram rendimentos médios de 2600 kg/ha e 2380 kg/ha respectivamente. O rendimento médio nacional para todos os produtores está em 1090 kg/ha (Censo IBGE de 2022).

O rendimento máximo na produção de feijão em sistemas convencionais no Brasil foi obtido pela Empresa de Pesquisa Agropecuária (EPAGRI) de Santa Catarina, utilizando variedades de alta produtividade e todo o pacote de insumos químicos, chegou a 4000kg/ha. Se este pacote fosse aplicado por todos os agricultores de feijão o aumento dos rendimentos seria de 530% para os familiares tradicionais e de cerca de 330% para os modernizados do agronegócio.

Experiencias de produção agroecológica de feijão apontam para rendimentos de até 3200kg/ha em sistemas diversificados complexos que incluem outros produtos na mesma área cultivada, o que inviabiliza a mecanização da colheita e limita esta produção a uma pequena escala, mais adequada para a agricultura familiar.

Chegar a generalizar os rendimentos indicados pelas pesquisas da EPAGRI (ou os da agroecologia) não vai ser coisa fácil.

Em primeiro lugar, porque este sistema mais avançado, dentro da lógica do agronegócio, foi formulado para a produção de feijão preto ou de cor nas condições de Santa Catarina e seria preciso desenvolver variedades adaptadas para o resto do país, em particular para a produção de feijão fradinho no Nordeste.

Em segundo lugar, porque a conversão de cerca de 1,2 milhão de produtores familiares tradicionais, localizados sobretudo no Nordeste, para sistemas capitalizados seria uma tarefa hercúlea e de alto risco, dadas as condições ambientais da região. Lembremos ainda que estes são agricultores de muito baixa renda, sem acesso ao crédito e à assistência técnica e com baixa inserção nos mercados. No entanto, convertê-los para a agroecologia em pequena escala é algo factível a partir de experiências já avançadas promovidas pela sociedade civil. Como já foi dito, esta última opção pode ter importante efeito social e retirar milhões de famílias rurais da situação de insegurança alimentar e até do Bolsa Família, mas sem efeitos maiores na oferta de feijão no mercado nacional.

– Aumentar a área cultivada dos atuais produtores.

No que tange a agricultura tradicional, em particular a nordestina, a disponibilidade de área é muito limitada para ser pensar nesta hipótese, já que mais de um milhão deles tem áreas menores do que um hectare. Já os agricultores familiares do agronegocinho dispõe de, em média, de 30% de sua área total para ampliar cultivos, mas provavelmente teriam que abandonar outras culturas e centrar na produção de feijão, o que os tornariam mais vulneráveis a eventos climáticos, ataques de pragas e flutuações de mercado.

A melhor possibilidade de expandir a área cultivada está nos grandes e médios produtores do agronegócio, que dispõe de área para expandir os cultivos e domínio das práticas agronômicas (convencionais) necessárias. Sem garantias de preços, créditos facilitados e mercado assegurado isto não vai ser possível.

– Atrair novos produtores de feijão.

Isto depende, sobretudo, de se criarem condições competitivas para este produto. Isto não vai ser fácil dada a consolidação de cadeias produtivas de exportação (como a da soja) com preços atrativos. Além disso, o risco que um agricultor teria que assumir ao abandonar a soja, por exemplo, para uma cultura mais delicada como a do feijão não deixa de ser um fator inibidor. Mais uma vez e mais enfaticamente, o governo teria que garantir créditos, preços e mercado que tornem competitiva a produção de feijão frente à das culturas de commodities.

O exercício acima, centrado no feijão, teria que ser feito para todos os produtos da nova cesta básica, começando pelos que já estavam incluídos na anterior, como arroz, milho, mandioca e trigo. Em todos eles haveria que se conseguir o aumento significativo do volume produzido anualmente. Será desafiador, em particular, aumentar a produção de hortaliças na quantidade exigida pela demanda aquecida por um programa dirigido à adoção de uma dieta correta.

Educação alimentar

Há outro fator a ser considerado nesta equação. Os hábitos alimentares dos mais pobres vem sendo condicionados há bastante tempo pela baixa renda e os altos preços e seria preciso um esforço enorme de educação alimentar para que seja adotada uma dieta correta do ponto de vista nutricional, mesmo garantida a renda necessária e a disponibilidade de alimentos.

O governo pode garantir a oferta de merenda escolar com uma dieta correta, desde que aumente significativamente os recursos orçamentários deste programa, mas não pode garantir que os aportes do Bolsa Família, mesmo incrementados, sejam utilizados pelas famílias para a adoção da dieta correta. E os mais pobres tem outras limitações, como o custo da energia (preço do botijão de gás) para o preparo das refeições ou o tempo necessário para este fim.

Será fundamental formular um amplo programa de educação alimentar de forma a garantir que a expansão de renda e da oferta dos produtos alimentares adequados resulte em uma mudança da dieta hoje vigente.

Qual o papel da agroecologia em uma política de eliminação da fome e de adoção de uma dieta correta do ponto de vista nutricional?

Já indiquei, em outros artigos, o potencial da agroecologia para responder a várias das limitações do atual sistema agroalimentar. No entanto, a inevitável e necessária transição para uma agricultura de base ecológica não pode ocorrer em prazos curtos.

O PBSF deveria adotar, na medida do possível, incentivos para facilitar a transição agroecológica, mas fixando metas praticáveis nas condições atuais. Isto seria mais viável, a meu ver, em um programa dirigido aos agricultores tradicionais. Seria possível, do ponto de vista do conhecimento agronômico e de assistência técnica, promover a produção diversificada de base agroecológica para microprodutores tradicionais, garantindo a autossubsistência com a adoção de uma dieta correta.

O MDA lançou um programa intitulado “Quintais Produtivos” que pode ser dirigido a uma produção agroecológica. Existem inúmeras experiências deste tipo promovidas pela sociedade civil, com amplo sucesso, que podem servir de modelo para reprodução em escala. Mas o programa está subdimensionado, quer nos valores identificados para cada família (10 mil reais), quer no número de famílias abrangidas (100 mil).

Não é viável propor que os produtores capitalizados de feijão, trigo, arroz, milho ou outros produtos alimentares, já acostumados ao modelo agroquímico e motomecanizado, possam ser convertidos aos sistemas agroecológicos em massa e em prazos curtos. A necessária e urgente expansão da produção de alimentos não vai ser conseguida por este tipo de conversão agroecológica com a necessária rapidez, já que exige alguns anos para ser completada. Mas é possível induzir a adoção de algumas técnicas desta necessária mudança de longo prazo.

Práticas bem conhecidas desenvolvidas por empresas de pesquisa como a EMBRAPA, as estaduais ou as universidades agrárias, podem ser disseminadas pela assistência técnica e condicionadas por créditos mais facilitados. É o caso, por exemplo, da adoção do Manejo Integrado de Pragas e doenças (MIP), que deve ser combinado com uma política de redução dos subsídios dos agrotóxicos e pela eliminação dos produtos mais perigosos, hoje largamente utilizados. A adoção do MIP, promovida pela FAO nas Filipinas, por exemplo, permitiu a redução do uso de agrotóxicos em 70%. Tudo isso tem a ver com as políticas de crédito, de seguro e de assistência técnica.

Como enfrentar os constantes aumentos de preços de fertilizantes?

O Brasil depende de importações de fertilizantes em quase 80% da demanda atual. Com um programa de expansão de produção de alimentos em larga escala esta demanda vai ficar ainda mais aquecida e os preços vão subir. A escalada dos preços do petróleo (15% apenas neste começo do ano) também vai pressionar o custo da fertilização. A curto prazo, mas muito mais a médio e longo prazos, o nosso déficit na produção de adubos vai ser dramático. É preciso adotar formas de substituir este insumo, já que não dispomos de reservas de fósforo e potássio que cubram mais do que uma pequena fração da demanda.

O governo deveria adotar um programa nacional de compostagem de lixo orgânico e de lodo de esgoto para enfrentar a carência nacional na produção de adubos. Estudos promovidos pela FINEP há muito tempo têm todos os elementos técnicos e de avaliação econômica e agronômica. No entanto, se tal programa for implementado e deixado à mercê do mercado, é mais do que provável que o agronegócio da soja iria competir pela apropriação deste insumo e a produção de alimentos poderia ficar marginalizada, mais uma vez.

O problema da irrigação

Outro programa fundamental a ser aplicado em larga escala é o financiamento de infraestruturas hídricas capazes de captar e estocar a água das chuvas para promover a irrigação. Este programa já existiu nos governos populares anteriores, mas em pequena escala e ainda não foi retomado.

As experiências com este tipo de infraestruturas hídricas produtivas foram promovidas pela sociedade civil no Nordeste, mas seria importante começar a adaptá-las para outras regiões, dada a crescente irregularidade das chuvas em todo o país. O programa anterior, chamado de “Uma Terra e Duas Águas”, pagava a construção de uma cisterna para uso caseiro e de uma infra hídrica para irrigação.

Existem vários modelos de infra hídrica para este fim, mas a mais comum foi desenvolvida pela Embrapa Petrolina e chama-se cisterna calçadão. Ela permite irrigar de meio a dois hectares de cultivos. Isto é suficiente para o programa dos quintais, citado acima, mas para roçados maiores seriam necessários outros modelos, mais caros. Para dar uma dimensão estimada de custos, dotar os produtores nordestinos com menos de dois hectares de terra (cerca de um milhão) de uma cisterna calçadão (uns vinte mil reais) custaria ao programa 20 bilhões. Já o apoio à produção agroecológica diversificada tem outros custos a calcular.

Para concluir, é preciso dar concretude e definir metas viáveis para o programa, detalhando as políticas específicas e garantindo a sua articulação coerente. E, “last but not least”, seria importantíssimo que o governo negociasse com os diferentes tipos de produtores para engajá-los nesta tarefa hercúlea de promover um novo sistema agroalimentar nutricionalmente correto.

A criação de uma estrutura estatal para tratar de forma integrada do problema da alimentação em todas as suas dimensões seria muito recomendável, superando estas fórmulas de agregar no papel dezenas de departamentos de vários ministérios, sem que tenham a possibilidade real de integrarem seus esforços. Tal estrutura já existiu no passado e podia voltar à vida, tal a importância desta questão. Trata-se do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, criado pelos militares em 1972 e extinto em 1997. Ao contrário dos tempos da ditadura, esta instituição deveria ter plenos poderes para mobilizar o Estado para enfrentar o problema endêmico da fome e da desnutrição.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.

Liberdade ou libertinagem?

Francisco Celso Calmon – abril de 2024

Há algum tempo a extrema-direita brasileira vem semeando a anarquia com a disseminação do conceito de liberdade de expressão como sendo uma via sem sinalização, sem normas, tornando seus seguidores em fora-da-lei, como temos visto.

O limite da liberdade é o outro, é a coletividade, estabelecido em normas legais e/ou de costumes.

Recorro ao Dicionário de Direitos Humanos da PUC-MG, verbete 38, de minha autoria.

Verbete: Liberdade

A liberdade é imanente à natureza humana e animal. Se assim não fosse ficar-se-ia ligado à parideira. A ligação total vai gradativamente sendo desfeita e o ser pleno sendo constituído e formado. O corte do cordão umbilical é o primeiro passo à liberdade.

O primeiro choro da criança ao nascer funciona para abrir os pulmões, expulsar o líquido amniótico que estava dentro dela e trocar pelo oxigênio. Os animais não choram ao nascer, mas gemem, como o mesmo intuito. O oxigênio é o combustível da vida! Cortar o cordão umbilical, chorar, gemer, são os comportamentos iniciais para a liberdade primígena.

Analisando a sua origem, em grego, “eleutheria”, que significava liberdade de movimento. Dizia respeito à possibilidade física de se movimentar. Imaginavam que fosse sem qualquer restrição externa.

Conceber a liberdade como uma condição na qual o ser humano não é obrigado a agir consoante à vontade de outro, é não estar escravizado por outrem. Portanto, liberdade implica em independência, é poder ir aonde quiser sem a obrigatoriedade de uma licença.

A liberdade terá limites sempre, ela é galgada passo a passo até a sua plenitude, que será quando a pessoa tiver o livre arbítrio de realizar algo. O onde realizar esse algo será o limite social e natural, colocado pelo meio ambiente.

Os limites frente à natureza e a sociedade são variáveis, não obstante, as transgressões são punidas pelas regras consuetudinárias e jurídicas da sociedade e pela reação da natureza, ambas nos seus respectivos timings.

No presente ano em que escrevo, 2021, sobre esse verbete, a humanidade vive um fenômeno natural de consequências sociais trágicas, qual seja: o novo coronavírus, covid-19, ocasionando uma pandemia que, em defesa da vida, está colocando limites nas liberdades relativas dos indivíduos, como a de ir e vir, a de reunião, a de festas e aglomerações de pessoas, bem como na obrigatoriedade de uso de instrumentos de proteção à saúde, como o costume da máscara facial e do álcool gel nas mãos, quando em público e for inevitável o contato social com outros.

O hino da República, conquistada sem povo e por um golpe, entre seus versos destaca-se o refrão Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós. Uma poética lindamente desejosa, de 15 de novembro de 1889, quando mal havia, formalmente, saído de 350 anos de escravidão, inicialmente de indígenas, posteriormente de negros, em 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea.

Liberdade não é poesia, é conquista e eterna vigilância, embora deva sempre se cantada em prosa e verso, como alimento do espírito libertário de um povo, sem o qual tiranos o aprisionam em grilhões ideológicos e físicos.

A supressão individual da liberdade é perversa e deletéria, contudo, quando justa, é necessária para a saúde e bem-estar da coletividade.

Um animal enjaulado aumenta a sua ferocidade, por um lado, e ocasiona a sua depressão, por outro. A jaula é antítese de seu habitat natural.

Um ser humano encarcerado, dependendo das condições, pode potencializar seus instintos mais primitivos, por um lado, e por outro, pode levar até ao estado vegetativo. O cárcere é antítese da dignidade da vida.

Liberdade é o contrário de escravidão, submissão, sujeição, servidão, cativeiro, cárcere, prisão. Quando o ser humano ou animal vive qualquer uma dessas situações, jamais esquece e valoriza e luta ainda mais para a conquista e a manutenção da liberdade de si e do coletivo.

Toda liberdade tem limites, mas há também a liberdade com sobre limites temporários decorrentes de algum corretivo.

A liberdade condicional é aquela que está circunscrita por limites expressos em lei ou costumes, em consequência de agravo à alguma regra, cujo julgamento levou ao recolhimento e depois a conquista da liberdade parcial ou condicionada a algumas regras.

“O preço da liberdade é a sua eterna vigilância”, esta frase é atribuída ao juiz irlandês John Philpot Curran em 1790, contudo, ficou conhecida quando Thomas Jefferson, por duas vezes presidente dos EUA e livre pensador, a usou em discurso em 28 de janeiro de 1852.

Essa sentença representa um alerta, um chamamento à proação, para a sustentação da liberdade. Estabelece a necessidade de se monitorar ininterruptamente os acontecimentos, fatos e narrativas, na sociedade nacional e internacional, a fim de detectar ameaças à liberdade do(s) povo(s) em seus prenúncios e fases iniciais.

Não basta conquistar e ter a liberdade, é mister preservar, e, para isso, é fundamental que ela seja enraizada, seja capilarizada.

Que haja mecanismos de alertas; quem sabe faz a hora, quem fica observando e esperando adormece na letargia. O despertar é a prevenção para a perene conservação, é como um despertador que acorda o seu usuário todos os dias.

Liberdade é sinônimo de autonomia, independência, permissão, autorização, deliberação, emancipação, licença, alvará, iniciativa.

O limite da liberdade é o outro, é a coletividade, estabelecido em normas legais e/ou de costumes.

Nesta moldura o sistema capitalista impede a liberdade da cidadania plena, por ser concentrador e piramidal de riqueza e poder, e vive em contradição com a democracia, entendida como processo crescente de igualdade. Portanto, a busca da liberdade se faz no processo de construção da democracia de raiz, a única capaz de colocar limites e depois ultrapassar o capitalismo.

Ser livre é ser sujeito de seu destino, é ser protagonista da história.

Sem oxigênio o ser humano não vive, sem liberdade não vive em plenitude, adoece e prematuramente falece.

“Libertas quæ sera tamen”, esta oração em latim de tributo a Tiradentes, enaltece o heroísmo de toda luta por liberdade, mesmo que tardia é imprescindível sempre.

Liberdade é o oxigênio da cidadania!

Brasil, junho de 2021, ano do genocídio bolsonarista.

* Publicado originalmente no Brasil 247, e, 14/04/2024

Francisco Celso Calmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.

A Constituição Federal de 1988, a Soberania Nacional, a Engenharia e o Elon Musk

Amaury Pinto de Castro Monteiro Junior – abril de 2024

A Constituição Federal de 1988 (CF), em seu preambulo afirma:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”

Logo em seu art. 1º afirma:

DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

  Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania; (grifo do autor)

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;         (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

V – o pluralismo político.”

Revistos e relembrados esses fundamentos importantes de nossa C;F., vamos abrir o debate sobre as mensagens enviadas ao povo brasileiro pelo Sr. Elon Musk, que em seus delírios de “santidade” se sentiu a vontade para declarar que vai descumprir as ordens emanadas da justiça brasileira, que não se reportará às nossas instituições, que se arvora no direito de fomentar discursos de ódio e desobediência civil à nossa Lei maior e de querer interferir em questões que só dizem respeito ao povo brasileiro e aos seus dirigentes eleitos por esse mesmo povo.

Mas a questões fundamentais que não foram feitas ainda são: 1. Quais os objetivos desse ataque extemporâneo?, 2. O que nos revelam esses ataques?

Em seu art. 1º, inciso I, nossa CF de 1988 realça como um dos seus principais fundamentos é  a SOBERANIA. E esse é o grande pilar em que se foca o Sr. Elon Musk para questionar, tentar quebrar e relativizar esse importante fundamento da CF em seus questionamentos recentes. Soberania quebrada é licença para agir contra os interesses do povo brasileiro, esse foi o grande objetivo do ataque.

Muitos se perguntam e afirmam que não conseguem ver qual as consequências desse ataque frontal à soberania do nosso povo todo e sua relação com o arcabouço de ataques e contra-ataques gestados e perpetuados contra o nosso país a partir de 2013, mais ou menos… Esse é um projeto que já vem acontecendo e sendo posto em prática há anos e que agora ganha um reforço explícito da parte desse sr.

Esses ataques começaram e se consolidaram através do Impeachment da Presidenta Dilma Roussef, dos ataques frontais à Petrobrás, da privatização criminosa da Eletrobrás, e de todas as ações implementadas para destruir as conquistas importantes da sociedade brasileira, em especial dos trabalhadores.

Grandes ameaças estão “em processo” e nós estamos fazendo “vista grossa” para esses movimentos, que são extremamente perigosos para o povo brasileiro como o domínio absoluto dos meios de comunicações no país, colocando em risco a nossa cultura e a rede de informações e de formação que alimenta de saber o povo brasileiro.

Desde os primórdios sabemos que o meio mais eficaz para destruir uma nação é aniquilando com o binômio Cultura e Educação; vender e naturalizar a teoria da dependência tecnológica como importante para o desenvolvimento do pais e para isso não se medem esforços para nos transformar em consumidores de tecnologia e exportadores de commodities, reforçados pela criação de uma robusta estrutura de comunicações e desinformação. Esse é o jogo que está sendo jogado…

Mas o que tem a ver esses delírios de um velho nacionalista com o Elon Musk, um self made man, poderosíssimo, bilionário capa de revistas, proprietário de enormes redes de comunicações e informações, empreendedor e produtor de produtos sofisticados para uma classe restrita, dominante e um excelente vendedor do grande sonho “de antanho” de que nosso futuro comum dependerá da exploração de novos ares no espaço, nas estrelas, na lua, em marte….?

Esse Sr tem vários instrumentos de dominação e difusão de informações, de troca de saberes, as redes de Comunicações e as Redes Sociais e vai utilizá-los para atingir seus objetivos.

Nas redes sociais, ele quer o domínio e daí o ataque às decisões da Justiça brasileira e, aliado à extrema direita da qual é um dos expoentes, quer o perigoso controle das redes de comunicação no mundo todo. Os incautos não percebem o poder que esses dois elementos têm sobre a vida das pessoas e sobre o futuro desse país.

Pelas redes sociais, de sua propriedade, quer a “liberdade” para desrespeitar nossas Leis e introduzir elementos estranhos à nossa cultura, manipular informações, criar uma massa de pouco informados que o ajudem a ter o completo domínio do futuro desse pais, comprometendo as nossas futuras gerações e, se possível torna-las vassalas obedientes de uma nova ordem institucional que nos coloque de joelhos, dependentes, consumidores para fortalecer seus impérios e ampliar seu poder de determinação e dominação sobre os povos.

A meu ver, é infinitamente mais perigoso ainda dar a esse Sr. o privilégio de prover a nação de soluções de comunicação universalizadas baseadas no STARLINK, lastreada em satélites que já vem se tornando padrão para ampliar as comunicações para as regiões mais longínquas desse país. Sem perceber o perigo, nosso governo se associa a esse Sr. e compromete projetos de universalização da Internet na Educação ao uso dessas redes.

O agronegócio já está migrando aceleradamente para a utilização dessa “nova maravilha”, nossas Universidades e Centros de Pesquisas se rendem à tecnologia não visível, mas sentida como poderosa e importante para o andamento de projetos e, até setores importantes da produção, se tornam cada vez mais dependentes de comunicação instantânea.

Vejam o quadro: Educação, Saúde, Cultura, Universidades, Centros de Pesquisa, Indústria, Comércio, Esportes, Transportes… todos conectados e dependentes desse tipo de tecnologia, unindo todas as regiões do país, sem qualquer controle e sob domínio de um Sr. que ameaça não se submeter às nossas Leis e a nossa Lei maior, a Constituição Federal. Pensem no poder de ocupação que essa tecnologia exerce sobre áreas sensíveis do país, como a Amazônia e outras…

Se foi fácil espionar nossa Presidenta da República, Dilma Roussef, em momentos em que debatíamos assuntos importantes do país, em especial da Petrobras, peço que imaginem como será muito mais fácil se a rede dominante de comunicações desse país não estiver sob o controle do Estado e as redes sociais não estiverem regulamentadas. O estrago será enorme.

No país já existe um exército de seguidores de teorias anti Nação dispostas a qualquer momento desestabilizar o país, como já tentaram em 08/01/2023, e continuam tentando através do Congresso Nacional, onde não tem nem o pudor de se esconder e se dão ao desplante de aprovar uma Moção de Apoio ao Sr. Elon Musk, justamente quando ele ataca nossas leis e nossas instituições. Que Congresso é esse?

Esses ataques estão muito relacionados ao projeto político de transformar e controlar o país para que siga as regras idealizadas pela extrema-direita internacional, que incluem uma parcela influente e pouco significativa em relação ao total da população brasileira.

Para isso e para que esse projeto seja bem-sucedido, a extrema direita já se conscientizou de que é preciso ter o domínio tecnológico, ter o comando das ações e planos desse país, e ter o controle absoluto das comunicações e da Educação para formar futuras gerações subservientes e dependentes das diretrizes desse grupo. O Sr. Elon Musk é um elo importante desse projeto.

Nosso atraso tecnológico, em termos de satélites e equipamentos sofisticados, é sensível reconheço,  mas não podemos nos acovardarmos e ficarmos reclamando pelos cantos, temos que nos unirmos para defender nossa Soberania, nosso principal patrimônio, através de ações que proporcionem o avanço na infraestrutura do país, proporcionem o desenvolvimento nacional e garantam a nossa independência enquanto Nação Soberana e responsável pelo bem estar de sua população.

Só existe uma forma de superar esse atraso, a nossa união em torno de um projeto de país que foque no desenvolvimento da Ciência, da Tecnologia e da Inovação. Foco na formação de cientistas, de pesquisadores, no incentivo ao renascimento de nossa capacidade de produzir inovações a serviço do povo brasileiro.

A Engenharia tem um papel importantíssimo a cumprir junto às Universidades e Centros de Pesquisa, ao transformar os avanços tecnológicos em produtos que alterem essa equação de consumidores e dependentes de tecnologia que, além de tudo quer nos escravizar, para consumidores e dependentes de tecnologia nacional, focada no desenvolvimento de um país mais justo e igualitário.

Ao Sr. Elon Musk, só temos uma resposta, à luz de nossas Leis e na defesa de nossas instituições e afirmamos: esse país preza sua soberania e sua independência e não vai permitir que aventureiros, preocupados com seu próprio enriquecimento e poder, venham ditar regras para nos colocar  de joelhos frente às demais nações desenvolvidas.

O Brasil não é só grande, é forte e sabe perfeitamente defender sua gente dos delírios autoritários provenientes de outras plagas….

Aqui respeitamos a nossa Constituição Federal de 1988, defendemos diuturnamentea nossa Soberania Nacional, temos orgulho e confiança em nossa Engenharia Nacional e nossa resposta a aventureiros como o Sr. Elon Musk é o repúdio e o enquadramento em nossas leis, já que somos orgulhosos da Democracia que estamos construindo.

Amaury Pinto de Castro Monteiro Jr.

Engenheiro Civil, Engenharia pela Democracia – EngD, Geração 68 Sempre na Luta

O antissionismo é a nova forma de antissemitismo?

Jean Marc von der Weid, Abril de 2024

Meu caro J., recebi a tua mensagem com um vídeo sobre o título deste artigo. O vídeo responde à pergunta pela afirmativa e faz uma muito bem argumentada narrativa para justificá-la. Vindo de você, que eu conheço desde meus 20 anos, não poderia esperar algo menos consistente. Afinal de contas, você está entre os amigos e companheiros de muitas lutas que sempre se manteve coerentemente à esquerda, com postura crítica e sem fanatismos estalinistas. A tua abordagem sobre Israel não deixa de ter uma motivação para além daquela que temos todos os militantes internacionalistas e perfeitamente justificada: você é judeu pela origem familiar, embora não crente, como bom marxista. Como tenho uma grande amizade e um grande respeito por você, estou respondendo aos argumentos do vídeo, que eu percebi como um questionamento a artigos anteriores que divulguei.

O vídeo lembrou-me de um evento de outra era. No último ano do exílio, 1979, o Comitê de Anistia de Paris, que eu então presidia, junto com o Liszt Vieira, promoveu uma série de debates onde grandes lideranças do exílio brasileiro apresentaram as suas avaliações sobre o processo de abertura em curso no país e as propostas políticas para o futuro próximo. Não me lembro de todos os debates, mas entre vários participantes destacaram-se o (Miguel) Arraes, o (Leonel) Brizola, o Apolônio (de Carvalho), o (Diógenes de) Arruda e o (Luiz Carlos) Prestes. Coordenei todos estes debates e guardei as minhas anotações até hoje. De todos eles, foi o do Prestes que mais “bombou” em termos de público e que provocou mais polêmicas.

Prestes me perguntou, antes de começar, quanto tempo ele dispunha para fazer a sua apresentação inicial introdutória ao posterior debate com o público, composto pela quase totalidade dos exilados em Paris (uns 200), estudantes da Casa do Brasil, na Cidade Universitária (uns 100) e uns 50 “brasilianistas” (franceses interessados no nosso país). E mais alguns espiões da embaixada brasileira. Respondi ao “Cavaleiro da Esperança” que eu jamais iria botar relógio de ponto no seu discurso e que ele podia falar o tempo que quisesse, lembrando apenas que tínhamos ao todo três horas para encerrar e que o público ansiava pelo debate. “Me avise com 25 minutos e eu encerro aos 30”, me disse ele. E falou exatos 30 minutos.

Não interessa, para os fins deste artigo, o conjunto da palestra do Prestes, nem as dezenas de perguntas e questionamentos que ele respondeu, sempre muito direto e conciso. A pergunta que diz respeito ao nosso debate atual foi sobre a democracia na União Soviética, em particular sobre o direito de greve da classe operária. A resposta foi a seguinte, se minhas anotações e memória estão certas:

“A democracia na URSS é total e não pode ser comparada com as democracias capitalistas”. (Murmúrios do público). “Como trata-se de um regime comunista, o proletariado está no poder e, por isso, não existe necessidade de greves pois isto seria uma ação contra este próprio poder, uma contradição absurda”. De fato, dada a premissa, o corolário está correto.

Em vários outros momentos Prestes repetiu este procedimento de definir uma premissa, não justificada ou discutida, para afirmar o seu ponto de vista.

Voltando ao nosso vídeo sobre Israel, chamou-me a atenção o uso do mesmo método. O autor parte de uma premissa: o direito dos judeus a um Estado próprio e tudo que se segue é justificado por este princípio. Para quem não viu o vídeo, adianto que ele não pretende justificar os massacres aos palestinos, muito pelo contrário. Ele defende o direito dos palestinos a um Estado próprio.

Assim como a premissa usada por Prestes para justificar a “democracia proletária” na ex-URSS, o “direito a um Estado judaico” não se sustenta.

A ideia de que este Estado é um direito do povo judeu e a sua implantação nas terras do que ficou conhecido como Palestina está na origem de toda a tragédia, que se prolonga desde 1946 até os horrores que hoje assistimos.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que nenhum direito existe sem que ele seja cotejado com os direitos de outros. A propaganda sionista, desde os tempos das origens do movimento no final do século dezenove, afirmava que a Palestina era “uma terra sem povo, destinada a ser ocupada pelo povo sem terra, os judeus”. Outra justificativa, mais de cunho religioso afirma que a Palestina era a terra que Deus tinha destinado ao seu povo escolhido. Quem se lembra da bela música do filme Exodus, nos anos sessenta? O refrão era: “this land is mine, God gave this land to me” (esta terra é minha, Deus deu esta terra para mim).

O argumento religioso justificou o processo de ocupação de Canaã pelos judeus após a fuga do Egito. Mas lembremos que esta ocupação também não se fez em uma terra sem povo. Os judeus passaram o rodo nos nativos que lá viviam, massacrando cidades como Jericó, entre outras. Aliás, a história está cheia destes exemplos, ao ponto que um historiador escreveu que não existe nenhum pedaço de terra no mundo que esteja ocupado por seus povos originários.

O argumento da terra sem povo, livre para ser ocupada pelo povo sem terra também não se sustenta. A Palestina do século vinte estava ocupada por milhões de árabes, outra vertente da etnia semita, com cultura e religião próprias (muçulmanos). E aqui começam os conflitos de direitos. A Palestina é o lugar onde existiu, por mais de mil anos, um Estado onde predominava a população judaica. Com a destruição deste Estado pelos romanos, culminada pela diáspora provocada pela destruição de Jerusalém no ano 70, a ocupação das terras foi sendo feita pelos árabes, a partir da expansão do islamismo no século VII.

Quando tem início a migração sionista no século XIX, os judeus remanescentes eram uma minoria que convivia com os árabes sem maiores atritos. O processo de reocupação induzido e financiado pelo sionismo, com recursos dos financistas judeus do ocidente (Rotschilds e outros) foi feito através da compra de terras dos camponeses árabes, que foram se alojar nas cidades e aldeias dentro do mesmo território. As comunidades destes camponeses judeus, os kibutzim, constituíam uma malha dispersa em um mar de comunidades camponesas árabes. Erroneamente, escrevi em um artigo anterior que a porcentagem de judeus no território que veio a constituir o Estado judaico na resolução da ONU nos anos 40, era de 7%. De fato, este número se aplica à totalidade do território do antigo protetorado inglês, incluindo todas as terras, do Mediterrâneo ao Jordão e no imediato pós primeira guerra. No território atribuído ao novo Estado judeu a porcentagem era bem maior, embora os árabes ainda tivessem peso significativo neste pedaço de terra até a guerra de 48. 

O recorte do território israelense negociado na ONU levou em conta, inclusive pelos negociadores representando os dirigentes judeus, esta ocupação mais adensada, ficando de fora o que veio a ser a Cisjordânia, Gaza e outros espaços menores onde os árabes eram largamente majoritários. Entre os dirigentes políticos chefiados por Ben Gurion, que veio a ser o primeiro presidente do novo país, houve uma forte polêmica, com os mais radicais cobrando um país incluindo todo o território da Palestina, a meta assumida pelo movimento sionista. Ben Gurion usou o argumento demográfico considerando que seria inviável garantir a estabilidade do novo país com uma ampla maioria de árabes. Mas a meta mais ambiciosa nunca deixou de ser a expansão da ocupação até a tomada de todo o espaço. E a política do governo israelense nunca deixou de ser, com altos e baixos, avanços e alguns recuos, chegar ao objetivo de um país “do Mediterrâneo ao Jordão”, com esmagadora maioria de judeus.

Esta hegemonia demográfica não podia ser alcançada sem uma imensa operação de limpeza étnica, com o deslocamento de milhões de árabes para fora do território. E isto foi sendo conseguido. Primeiro com a guerra de 48, que levou mais de um milhão para os acampamentos de refugiados nas fronteiras do Líbano, Síria e na faixa de Gaza. Depois com a ocupação da Cisjordânia e de Gaza na guerra de 67. Nestas áreas o processo de expulsão dos palestinos foi mais paulatina, com novas colônias sendo implantadas, sobretudo na Cisjordânia, onde hoje já se encontram mais de 500 mil israelenses. Gaza foi um osso mais duro de roer e o governo trabalhista de Rabin chegou a recuar e retirar colônias já implantadas, após uma das muitas negociações mediadas pelo governo americano. Mas lembremos que Rabin pagou com a vida esta ousadia, vista como uma traição pelos extremistas sionistas e os ultraortodoxos judeus.

No momento presente a limpeza étnica continua, inexorável, quer pela violência mais aberta do exército de Israel, quer pela violência permanente contra os palestinos nos territórios sob seu controle. Lembremos que, desde a fundação do Estado de Israel, a população palestina vive em um limbo de cidadania. Sem ter os direitos dos cidadãos plenos do novo Estado, os palestinos estão sujeitos a todo o tipo de agressões e pressões, aplicadas com o intuito não disfarçado de provocar a sua exclusão e migração.

Esta limpeza étnica, no presente momento, está se acelerando, sobretudo (mas não somente) na Faixa de Gaza.

“Discordo que a ofensiva militar israelense signifique um genocídio. Seria o caso se os bombardeios tivessem como objetivo matar todos os palestinos.
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Embora o objetivo não seja, como no holocausto, o extermínio de todos os palestinos, o efeito pode ser esse mesmo, se o processo não for sustado”.

Discordo que a ofensiva militar israelense signifique um genocídio. Seria o caso se os bombardeios tivessem como objetivo matar todos os palestinos. Se este fosse o objetivo, o método seria o que se chamou, no fim da segunda guerra mundial, de bombardeio de saturação, onde o alvo é a população em geral. O governo de Israel ameaçou a população da zona norte de Gaza e comandou a sua migração para fora da zona de combate, levando quase um milhão de pessoas a se comprimirem na zona sul. Os bombardeios não deixaram de arrasar as construções da zona norte, matando 10% dos 300 mil remanescentes. O segundo movimento do exército foi levar a guerra total para a zona sul de Gaza, e o objetivo agora é expulsar todos para as terras fronteiriças do Egito. De forma sinistramente hábil, a pressão maior agora alia os bombardeios ou combates no solo com a redução da população palestina a uma situação de penúria extrema, com a interdição da entrada de alimentos, remédios e de assistência médica e sanitária. Dados da ONU apontam para uma ingestão calórica média de 250 calorias por dia entre os sobreviventes da zona norte, sem dados equivalentes para a zona sul. Sabendo-se que a ingestão mínima de calorias para a sobrevivência dos humanos é de 2 mil calorias por dia, o que está ocorrendo é uma cruel matança por inanição e doenças correlatas, muito além do número de baixas por bombas ou tiros. Embora o objetivo não seja, como no holocausto, o extermínio de todos os palestinos, o efeito pode ser esse mesmo, se o processo não for sustado.

Para concluir, o “pecado original” nesta catástrofe provocada pela ação humana é a própria existência do Estado de Israel, que autodefiniu como objetivo vital da nação o amplo predomínio populacional dos judeus sobre os palestinos dentro do território “histórico” que Deus lhes atribuiu. Sem uma brutal limpeza étnica, que vem ocorrendo desde a fundação do Estado de Israel, tal meta seria inalcançável.

Israel tem direito a ter um Estado próprio? Em tese, sim. Mas onde? Em um território já amplamente ocupado há mais de um milênio por outro povo? A história poderia ter sido diferente se a proposta tivesse sido a criação de um Estado multiétnico, multicultural e laico, mas isto significaria dividir o poder com uma população majoritariamente árabe e muçulmana e isto era inconcebível pelo movimento sionista. Já a “solução” dos dois Estados, proposta na resolução da ONU que criou o Estado de Israel, parece inviável, mesmo supondo que o poder dominante entre os israelenses aceitasse esta saída, contrária a toda a pregação centenária do sionismo. Qual o território a ser atribuído a este Estado palestino? A Cisjordânia já está dividida meio a meio entre as duas populações. Israel aceitaria retirar 500 mil colonos que lá habitam? E para onde estes iriam? E que Estado Palestino seria esse, com um território dividido em dois (Gaza de um lado e Cisjordânia de outro, separados pelo território israelense) e com mais de um milhão de refugiados querendo voltar?

O preço que os judeus em todo o mundo estão pagando pelo sonho do renascimento do Reino de Israel está sendo o isolamento político e ideológico e a cruel mudança de ser percebido como um povo oprimido que passou a ser um povo opressor. E, sim, no rastro desta tragédia estamos vendo renascer o velho antissemitismo, às vezes apenas encoberto sob a capa do antissionismo.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (ASPTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

Jean Marc von der Weid