Quando a ideologia capitalista é a matriz de gestores.

Francisco Celso Calmon

Um é a favor do desemprego, a outra é a favor de que os aposentados do INSS recebam a cada ano menos valor real da aposentadoria.

Ambos minam o governo lula para descumprir suas promessas de campanha.

Ambos são filiados à ideologia capitalista, na qual manter um exército de desempregados é regra para que os trabalhadores saibam que existem outros à espera dos seus postos de trabalho e tenham menos força de negociação para aumentos de salários. 

Prejudicar os aposentados é outra regra, pois, para o capital é mão de obra inservível, já venderam as suas forças de trabalho por décadas, já engordaram o capital, através da mais valia, o suficiente para serem descartados.  

Num momento de tragédia ambiental e humana, a manutenção da Selic elevada e levantar a velha cantilena do déficit da previdência social, não é só desumano, mas também politicamente inoportuno e sem respaldo técnico. 

Por que não apresentar um cardápio para tirar de quem tem sobrando e especulando?  Por que não estipular um imposto de guerra por pelo menos três meses sobre os que ganham mais de vinte salários mínimos? Por que não repensar na volta da CPMF (melhorada e adequada tecnologicamente)? Por que sempre penalizar os pobres e nunca os demasiadamente enricados?

No cardápio da Simone Tebet faltará para os aposentados a picanha e a cervejinha prometidas pelo Lula, e as restrições serão num crescendo, pois quer desvincular para sempre o aumento real dos aposentados, a sua proposta é a precariedade crescente sobre os idosos. Os aposentados contribuíram sobre o valor do salário real, agora propõe reverter essa regra. 

Quanto aos juros, argumentos técnicos e de gestão não mudam o papel do representante dos rentistas e bolsonarista raiz, Bob Neto, que sabota abertamente à economia nacional e o governo do presidente Lula. 

A última reunião do COPOM mostrou três sinais: primeiro, ele não tem o grupo na mão; segundo, teve que se expor e desempatar e o fez pela redução mínima de 0,25 %; terceiro, não são critérios técnicos objetivos, mas, subjetivos e de natureza político-ideológico que o presidente e outros diretores do BC usam.  

Juros altos só retraem o consumo e o investimento, sem os quais não há crescimento econômico, aumento de emprego e melhorias das condições de vida.  

Ambos, Simone e Bob, com suas propostas e medidas querem a manutenção do desemprego e da insuficiência alimentar dos aposentados.

Metas de inflação, de limites de gastos com a saúde e a educação, desconexadas de metas positivas, consoante à Constituição Federal, agridem frontalmente o artigo terceiro da Carta Magna.

Gastar mais com juros do que com a saúde e a educação a quem beneficia? Ao país e ao povo evidentemente que não.

É mister que haja metas prioritárias do bem comum: emprego, salário, saúde, educação e assistência social, dignos, como é o mandamento constitucional. 

Vamos colocar o seguinte parâmetro como exemplo: os gastos com os juros não podem ultrapassar os investimentos com saúde e educação. 

Parâmetro para o câmbio, de maneira que atenda às necessidades competitivas de exportação e de importação necessárias ao desenvolvimento econômico do país. 

Meta fome: zerar a insuficiência alimentar, enquanto não atingir a meta, os bancos pagarão um imposto temporal de 0,01% de seus lucros líquidos para socorro dos famélicos, quantia equivalente a 10,7 milhões, com base no lucro que os cinco maiores tiverem em 2023.

Meta emprego: enquanto o pais não atingir o índice de 4% de desemprego, haverá uma contribuição provisória de 0,1 dos 100 maiores empresários do país.

Meta ecológica: zero queimadas, corte irracional de árvores, garimpagem predatória, controle rigoroso de química na lavoura, etc.

Criar matérias para todo o ensino, do fundamental ao universitário, sobre ecologia. 

A presidente do PT, sempre alerta, já se postou contra Simone e Bob Neto e suas posições. E os demais partidos de esquerda, e as centrais sindicais e os movimentos sociais?

Estudantes brasileiros ainda letárgicos na luta contra a guerra genocida aos palestinos; sindicatos esqueceram de como mobilizam os trabalhadores; os culpados clamando para não procurarem os culpados; a mídia direitista, com a bandeira inócua da não politização, pregando a alienação.

Solidariedade não é passividade e nem imobilidade quanto às causas e os responsáveis da falta de prevenção ante os fenômenos climáticos, especialmente aos com potencial de destruição flagelante.

O clima mudou, a natureza vem reagindo à ação predatória que o homem lhe impõe há séculos, notadamente com a vigência de um capitalismo de desastre, no qual, como o livro Doutrina do Choque, de Naomi Klein, narra como o capital, se não provoca sempre desastres naturais, dele se aproveita para explorar a reconstrução em seu benefício.

O negacionismo, o darwinismo social e o malthusianismo da caserna vêm sendo matriz fascista expansionista no mundo diante da impotente ONU.  Entretanto, a solidariedade ainda existe e o povo brasileiro vem dando essa demonstração, apesar das trapaças e mentiras da extrema direita, bem como a juventude estudantil internacional na solidariedade ao povo palestino contra o governo genocida de Israel.

Uma tragédia provoca sentimentos diversos, geralmente é uma ocasião onde valores humanos e cívicos se sobrepõe à indiferença e às pregações raivosas e deletérias.

É uma conjuntura adequada para a promoção dos direitos humanos e dos valores ideológicos do humanismo, assim como para a elaboração de um projeto de desenvolvimento econômico ecologicamente sustentável, tendo os seres humanos e a natureza como referências centrais em vez do lucro desvairado do capitalismo.

Os eventos climáticos voltarão a acontecer e até pior, segundo previsões de cientistas. O que não pode voltar a ocorrer é a mesma ou pior tragédia humana.

Proagir, é o lema a ser obedecido doravante por todas as instâncias governamentais. Os governos devem ser proativos e não esperar acontecer tragédias para correr atrás de remendos.

A intentona de 8/1 e esta tragédia gaúcha fornecem ao Lula e ao Estado democrático de direito indicativos para onde o Brasil deve caminhar e não permitir mais retrocessos. 

Tudo é política, tudo dever ser politizado. Afinal, fora da política é a barbárie.

Francisco Celso Calmon

*Texto ampliado em relação ao original publicado.

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.

Desastres naturais: imprevisibilidade e negligência

Perdas humanas e materiais

Geraldo Eugenio

A tragédia que se abate sobre  o Rio Grande do Sul comove a todos brasileiros e perplexidade em todo mundo. A fúria das chuvas que caíram em uma ampla região concentradas em poucos dias é ameaçadora e em poucos dias as calhas dos rios e arroios transbordaram, as barragens encheram e algumas cederam, resultando  num rastro de morte e destruição. 

Há poucos meses uma situação similar se deu no litoral de Pernambuco, atingindo de forma violenta os municípios de Recife e Jaboatão dos Guararapes. Afinal em algumas localidades foram mais de trezentos milímetros de chuva em um período inferior a vinte e quatro horas.

Em ambos os casos falamos de trombas de água que desabam sobre áreas delimitadas em um curto período em intensidade aterrorizante seja nos morros e córregos, seja nas planícies. Não há como se evitar certas ocorrências mas em parte dos casos ao se analisar os alertas, sejam técnicos ou não nos últimos dias e meses, há de se considerar que nem sempre as medidas mais acertadas foram tomadas. Tendo-se a impressão de que em boa parte dos casos os gestores apostam como se fosse um jogo qualquer e ficam torcendo para que o enunciado não ocorra. Pode até ser que em alguns momentos tenham sorte o suficiente para que não ocorra, mas o mais prudente é seguir os estudos e previsões e estarem preparados para os desastres sejam eles que configuração e proporção apresentarem.

Há um problema de gestão

No caso das regiões metropolitanas do Brasil há um denominador comum: ocupação indevida, consensuada, de áreas de reserva legal, preservação permanente e relevos de risco. Os gestores, por inépcia ou conveniência tentam fazer de conta que não ver os crimes ambientes que se cometem em suas jurisdições e na hora da cobrança, sem o menor constrangimento, tenta jogar a culpa para as administrações passadas, quase sempre tão desastradas quanto às atuais, ou para esferas que não têm muito a ver o que ocorre em sua porta. Há casos em que ao se analisar os orçamentos executados nos anos anteriores se chega à triste conclusão  de que nada ou quase nada do que deveria ter sido investido em áreas de risco foi realizado.

Uma segunda questão crítica diz respeito aos planejamentos estratégicos para as cidades e macrorregiões. Primeiramente, são obras de ficção. Documentos elaborados às pressas para se cumprir com alguma demanda de um credor ou uma legislação que exige sob ameaça de não se contar com outros recursos governamentais ou não. A terceira abordagem diz respeito à geografia humana e econômica das regiões metropolitanas em primeiro lugar.

Quase sempre, mais da metade dos recursos dos 27 entes federativos, à exceção de Brasília que, por si só é uma região metropolitana, são investidos na capital e municípios vizinhos no sentido de mitigar os efeitos da superpopulação. Para se avaliar as causas que levam à proliferação de favelas e ocupações indevidas poucos fazem o dever de casa em observar o que está ocorrendo nos municípios mais distantes seja a melhor opção de conter os fluxos migratórios em direção à capital dos estados e permitir uma vida mais digna aos seus cidadãos, em particular quando se leva em conta o fator habitação. 

Ninguém em sã consciência optará por construir uma  pequena casa em um córrego, morro ou área ribeirinha, caso conte com outra escolha. Considerando que o valor dos imóveis disponíveis à construção de conjuntos e condomínios populares é extremamente elevado, a opção que melhor se observa é lavar as mãos e sempre que haja alguma comoção se correr para as respostas mitigadoras à depender da conformação do relevo, à exemplo de construção de escadarias, mantas asfálticas, lonas, serviços de drenagem deficientes, quando não aterramento dos mangues e áreas baixas para se atender a demanda dos conhecidos planos diretores que levam em consideração bem mais a demanda do setor imobiliário do que a vida das pessoas e o bem estar da comunidade.

Por incrível que pareça, quase sempre há um aviso prévio

No caso de situações como as duas mencionadas: as regiões metropolitanas de Porto Alegre e Recife, há de se considerar que  os sistemas de previsão são falhos bem como os mecanismos de alerta uma vez somente em casos específicos, mesmo em país mais evoluídos do ponto de vista científico, há como se estimar não apenas a quantidade mas em particular os danos e as consequências de uma enchente, de uma seca ou de uma “tromba d`água”. De uma coisa estejam certos, nem que seja em um período de quarenta e oito horas alguns sinais do que poderia ocorrer ficaram claros para quem anda com os olhos  abertos. Valendo esclarecer que se considerando sua peculiaridade, o mesmo se dá em relação às secas.

O jogo de empurra-empurra

Tal como na maioria dos casos, o governo do Rio Grande do Sul, sem a menor cerimônia, tenta culpar o governo federal e a natureza por suas falhas. Afinal é este mesmo ente que literalmente destruiu a legislação ambiental que protegia as áreas de riscos em função do ´desenvolvimento` urbano falso e enganoso. O governo federal, ao qual cabe contar com sistemas de informações suficientemente capazes de prever situações de risco, não o faz da forma devida. Seja para delitos de todas as ordens, inclusive os ambientais. Os gestores municipais, quase sempre sócios ou reféns da expansão imobiliária seja horizontal, ocupando terrenos impróprios, ou vertical que adiciona alguns pavimentos a mais nos edifícios, exercendo o ouvido de mercador e faz de conta que não tem nada a ver com o ocorrido. A sociedade também tem sua responsabilidade, em particular as lideranças que tender a ver o resultado das ações a um curto prazo, também fazendo de conta que secas, enchentes, e outros desastres naturais são coisas do passado ou de um futuro com o qual não se deve preocupar uma vez que já não estarão mais aqui.

Enquanto isto a natureza continuará enviando sua fatura

O fato que toda esta pantomima pode enganar aos que pretendem ser enganados mas não à natureza. Sua capacidade de processamento de dados é implacável, bem como a de armazenamento de informações e, sem exceção, um dia a mais ou a menos, a fatura é emitida e chega causando medos, apreensões, mortes, prejuízos e desculpas. Além das falsas lamentações, a certeza de que a próxima calamidade já não ocorrerá em sua gestão. Uma conclusão  sombria mas, lamentavelmente é assim que a atenção com a terra tem sido conduzida. Seja no litoral ou no semiárido. O padrão é similar.

Publicado originalmente no Jornal do Sertão, em 09/05/2024 2024 18:46 , Agronegócios.

Geraldo Eugênio

Engenheiro Agrônomo, ex-Secretário de Agricultura de Pernambuco, Ex-diretor da Embrapa e atualmente Professor Titular da UFRPE-UAST, Serra Talhada, PE. Tem se dedicado à gestão de secas e mudanças climáticas no Semiárido.

Os eventos climáticos chegaram para ficar, não apenas no Rio Grande do Sul

Tomás Togni Tarquinio

O Rio Grande do Sul foi novamente vítima de efeitos calamitosos causados por eventos climáticos extremos. Quatro eventos destruidores ocorreram em pouco mais de seis meses. O último fenômeno devastador, maio 2024, foi violentamente incomum. Registrou índices de precipitações jamais constatados desde que há medidas. Causou numerosos mortos e desaparecidos, sofrimento a milhares de desabrigados e desalojados, perda de patrimônio, danos materiais à população, indústria, agricultura, infraestruturas, serviços públicos e privados, saúde, educação e aos ecossistemas rurais e urbanos de modo sem precedentes.

O ano de 2023 foi o mais quente que o planeta conheceu, entre centenas, para não dizer milhares de anos, segundo a Nasa. Nosso futuro será inevitavelmente desastroso, sem ações drásticas que alterem o curso da desregulação ecológica. O que ocorre no Rio Grande do Sul – e alhures – será um aperitivo, sem não forem tomadas ações urgentes e ambiciosas destinadas a proteger a população e os meios naturais; ou mais precisamente, as condições de habitabilidade dos viventes, humanos e não-humanos que convivem sobre a face da Terra. Por ora, as chamadas transições ecológica e energética seguem sendo uma falácia diante da urgência.

Os vetores das mudanças climáticas

Sem serem especialistas, as vítimas gaúchas puderam constatar que os quatro vetores que caracterizam as mudanças climáticas estiveram presentes na tragédia do Rio Grande do Sul: ocorrem com maior frequência, são mais intensos, duram mais tempo e são mais extensos territorialmente. No entanto, esses fenômenos sempre existiram, mas não se manifestavam como atualmente e cuja tendencia futura é de se agravar, progressivamente. Os mesmos quatro vetores podem ser constatados no caso de secas, canículas, incêndios, vendavais, ciclones, furações e não apenas no tocante a inundações e chuvas torrenciais. De excepcionais, esses fenômenos estão se transformando em permanentes. Porém, com um sério agravante: chegaram para ficar e vão se repetir. Eles não mais batem à nossa porta, mas já adentraram à antessala. Cada região do planeta está sendo afetada por eventos climáticos diferentes. Umas regiões serão atingidas por ciclones, outras por aumento da temperatura, ou secas, incêndios, inundações, alcançando níveis de degradação sem precedentes. Outras serão mais vulneráveis do que outra, talvez seja o caso do Rio Grande do Sul.

Desastres climáticos estão por toda parte

Os gaúchos não estão sós nessa tragédia. Nas últimas semanas, tempestades assolaram a África do Leste: 188 mortes no Quénia, 155 na Tanzânia, 28.000 famílias deslocadas na República Democrática do Congo, 2.000 no Burundi. Na China, as chuvas afetaram Guangdong, província mais numerosa com 127 milhões de habitantes. Em meados de abril, chuvas e vendavais atingiram Omã, Emirados Árabes Unidos e outros países do Golfo Pérsico, sem se estender às demais calamidades que afetam o planeta.

Esses eventos climáticos extremos que assistimos em várias regiões do planeta não são resultantes das emissões de gases de efeito estufa (GEE) que foram lançadas atualmente na atmosfera. Há uma inercia entre o lançamento dos GEE e seus efeitos. Na realidade, os eventos atuais são consequência dos GEE lançados e acumulados na atmosfera durante os últimos 20 ou mais anos. Em decorrência, os eventos extremos futuros já estão determinados pelos GEE que emitimos hoje. Se fosse possível, por um passe de mágica, suprimir, hoje, todas as emissões de GEE do planeta, reduzi-las a zero, o aumento da temperatura do planeta seguirá sua trajetória ascendente durante as próximas décadas. Por essa razão, os eventos climáticos extremos chegaram para ficar e somente podem se agravar. Em outros termos, a tendencia futura será ao agravamento. Tanto mais que, em que pese todas as advertências lançadas durante quatro décadas, a sociedade termo industrial – da qual apenas uma parte da humanidade se beneficia – nunca consumiu tanta energia fóssil como 2023. Isso significa que o Rio Grande do Sul deverá conhecer novas catástrofes climáticas no curso dos próximos anos e decênios. Não há como fugir a essa realidade que não dependem somente de ações locais e regionais, mas sobretudo globais.

A desregulação ambiental não é espontânea

O aquecimento global – e sua consequência, a mudança climática -, não é um fenômeno isolado, único. Trata-se de um componente de algo muito mais vasto: a desregulação ecológica do planeta. Essa desregulação é composta de outros fenômenos não menos graves tais como: perda de biodiversidade vegetal e animal; esgotamento de recursos naturais não-renováveis; poluição dos meios naturais (água, ar, solos…). Tratam-se de fenômenos que engendram outros.

O aquecimento global não é um fenômeno espontâneo. Trata-se de transformação forjada pelo nosso modo de organização social e de produção e consumo de bens e serviços.

O aquecimento global não é algo incerto e não sabido. Trata-se de fenômeno medido diariamente e cujas previsões – realizadas há quatro décadas – estão se realizando de modo mais acentuado do que se imaginou inicialmente.

Há ações possíveis para conter a mudança do clima

Grosso modo, há duas ações possíveis para se conter os efeitos do aquecimento global se pretendemos preservar as formas de vida existentes no planeta: a atenuação (mitigação) e a adaptação. Ambas ações devem ser conjugadas nas esferas global, regional e local para serem efetivas. Não dependerá apenas dos esforços dos gaúchos.

A primeira, atenuação, significa redução drástica das emissões de GEE, particularmente as derivadas do consumo de energias fósseis. Ou seja, reduzir ao máximo o uso de combustíveis fósseis, reduzir o consumo de proteínas animais, reduzir a mobilidade, reduzir produção e consumo, o desmatamento, as queimadas; abolir a monocultura, reflorestar, revegetalizar áreas urbanas, recuperar ecossistemas, etc. São ações de caráter global, regional e local. Os resultados da atenuação serão perceptíveis a mais longo prazo, não imediatamente.

A segunda, adaptação, demanda obras importantes de infraestrutura de contenção de enchentes, deslizamentos, diques, ou reflorestamento de bacias hidrográficas para reter água, etc. Os resultados são mais imediatos, porém, caros e paliativos e exequíveis no âmbito local e regional.

O futuro não pode ser o prolongamento do presente

Porém, atenuar e adaptar são medidas que entram em colisão com a ideologia do crescimento em mundo finito. Reduzir pela metade o consumo de energia primária fóssil até meados do século significa retração do funcionamento do aparato de máquinas que se movem graças ao carbono fóssil, em 85% dos casos. O futuro não será o prolongamento do presente, não será uma simples questão de alterar infraestruturas, eletrificar processos produtivos, de mobilidade, de substituição de energias fósseis por energias renováveis. Trata-se de mudança cultural, civilizatória.

Tomás Togni Tarquinio – Formado em Antropologia e Prospectiva Ambiental na França. Desde 1977, trabalhou em diversas instituições francesas e europeias pioneiras sobre: energia, ecologia política, meio ambiente, decrescimento e colapso da sociedade termo-industrial. Foi Secretário do Governo do Amapá, por ocasião da execução do pioneiro Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA); trabalhou no MMA e Senado. Trabalhou em países da América Latina e Europa.

REQUIÃO, CIRO e ALDO

Dilermando Toni – 04/2024

Amiúdam-se as críticas ao governo Lula partindo de quadros com grande experiência na vida pública e que em outras ocasiões estiveram apoiando e participando do projeto encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores, projeto esse que atualmente navega com uma frente amplíssima, bastante heterogênea, da esquerda – onde está o PCdoB – à direita, com o objetivo da Reconstrução e Transformação do Brasil. Em um quadro de imensas dificuldades, após quase um ano e meio de vida, no qual a extrema direita derrotada nas urnas por margem apertada de votos mantem-se ativa tendo como base um Congresso Nacional de feição extremamente conservadora.

Requião, Ciro e Aldo têm tomado posições que os colocam longe ou mesmo em oposição ao governo. Pela envergadura política desses homens, pela sua origem e trajetória é bom prestar-lhes atenção e examinar criticamente suas opiniões. Na condição de mero observador da cena brasileira arrisco aqui alguns palpites.

Roberto Requião foi três vezes governador do importante estado do Paraná, duas vezes senador da República fez toda a sua carreira política no MDB, integrando uma ala arejada chamada de MDB Velho de Guerra. Antes do pleito presidencial de 2022, devido à polarização entre as forças progressistas e a ultradireita bolsonarista, optou por entrar no PT, tendo sido peça importante da campanha vitoriosa de Lula. Sua trajetória é marcada pela crítica acerba ao neoliberalismo e à oligarquia financeira, em defesa do Estado nacional e do desenvolvimento soberano.

Ciro Gomes foi governador do Ceará, prefeito de sua capital, deputado estadual e federal, além de ministro de estado. Foi quatro vezes candidato a presidente da República, passou por vários partidos políticos e hoje está no PDT. As gestões de Ciro estiveram em consonância com os interesses nacionais e populares tendo por isso alcançado alto prestígio em sua terra. Nas duas últimas vezes em que concorreu a presidente Ciro se colocou em oposição à candidatura Lula tentando criar uma terceira via e se dizendo portador único de um projeto de desenvolvimento nacional que estaria ausente das propostas da Federação Brasil da Esperança – PT, PCdoB e PV.

Aldo Rebelo esteve até anos recentes filiado do PCdoB, presente nos altos escalões da direção partidária. Foi presidente da UNE, vereador na capital de São Paulo e deputado federal por cinco mandatos representando aquele Estado. Foi ministro do Estado nos governos Lula e Dilma e também presidente da Câmara dos Deputados em cuja condição teve importante papel da defesa do mandato de Lula. Como deputado seu mandato ficou marcado por ter sido relator do polêmico Código Florestal e como ministro por ter se transformado em embandeirado defensor das Forças Armadas brasileiras. Em 2017 acabou por romper com o partido dos comunistas, e iniciou uma peregrinação por outras siglas estando atualmente filiado ao MDB, engajado no projeto político do atual prefeito de São Paulo, exercendo o cargo de secretário de relações internacionais da prefeitura.

Requião em entrevista recente a AEPET TV anunciou sua saída do PT avaliando que o governo tomou uma feição de centro-direita conduzindo uma política econômica que não teria diferenças essenciais com a política liberal anterior de Paulo Guedes, fortemente submetida aos banqueiros e ao pagamento da dívida pública através de juros escorchantes estabelecidos pelo Banco Central independente. Diz-se profundamente contrariado com a regressão da orientação adotada para a Petrobras – atualmente controlada por fundos de investimentos estrangeiros – na distribuição de dividendos que estaria minando a capacidade de investimentos da empresa. Constata a queda do prestígio do PT e do arranjo político que lhe dá base prevendo que nas próximas eleições presidenciais a direita neoliberal poderá ser vitoriosa, com alguém tipo um Javier Milei brasileiro, diz ele. Conclama, pela esquerda, a uma mudança dos rumos adotados até aqui com a ruptura com o liberalismo econômico. Por fim diz que está em busca de uma alternativa organizativa com a qual possa desenvolver suas ideias e projetos. Diz querer mais do que o governo vem fazendo só não diz concretamente como enfrentar na prática desafios tão grandiosos.

Ciro com a acidez que acompanha seu raciocínio atilado, conhecedor da realidade econômica do país e dominando o funcionamento de suas instituições econômicas e políticas não faz propriamente críticas, mas ataques e denúncias que vão do econômico, passam pelo arcabouço institucional do país, até os costumes, colocando-se em oposição frontal ao governo federal. Isso é o que se pode extrair da longa entrevista que concedeu a Jovem Pan nos finais de março. O PT (“com seus puxadinhos”) e Lula são seus alvos prioritários. Culpa-os por todos os males que afligem o Brasil atualmente. Vê o dedo do PT na expansão das milícias e do crime organizado das facções criminosas, na conivência com a independência do Banco Central e seu atual presidente, no pagamento de R$ 728 bilhões em 2023 aos donos das finanças e do capital especulativo. Diz-se mais livre para falar o que quiser por não ter mais pretensões eleitorais e fala de um acordo (esdrúxulo) que fez no PDT: ele, na condição vice-presidente em oposição visceral enquanto o presidente licenciado do partido exerce o cargo de ministro do governo. Faz também críticas contundentes sobre a situação de seu estado, o Ceará e uma avaliação extremamente pessimista para o próximo pleito municipal prevendo uma derrota contundente do PT e do restante da esquerda em todo o Brasil. Ciro não junta Lé com Cré. Hoje é um livre atirador que, com a aproximação das eleições municipais, vem ganhando espaço na mídia.

Aldo protagoniza uma mudança de campo. Da esquerda passando pelo centro e agora nos braços da direita. Suas críticas situam-se no terreno político, exatamente naquilo em que o governo Lula e o Supremo Tribunal Federal têm de mais importante, a defesa da democracia. Assim, Rebelo avalia que os acontecimentos de 8 de janeiro quando foram feitos ataques e depredações às sedes do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto, não configuraram uma tentativa de golpe de Estado. Disse ao InfoMoney agora no mês de abril que “os acontecimentos do dia 8 de janeiro de 2023 não podem ser caracterizados como uma tentativa de golpe de Estado.” Afirma que Bolsonaro está sendo vítima de casuísmos jurídicos, que ele chama de artifícios, para afastá-lo da vida pública. Ao mesmo tempo afirma, como opositor, que Lula não tem capacidade para governar com base em alianças heterogêneas responsabilizando-o pelas dificuldades de construir o apoio da maioria do Congresso Nacional. Na questão da disputa para a prefeitura de São Paulo na qual está engajado, diz que a cidade precisa de uma administração feita por forças heterogêneas como a atual e que o candidato Boulos do PSOL, que conta com o apoio do PT, do PCdoB, do PDT entre outros, protagonizou recentemente um movimento de sabotagem contra o Brasil. Na essência renega seu passado, embora se julgue coerente. Esconde-se atrás do combate ao identitarismo para dizer que o PCdoB não é mais um partido de esquerda, pois teria abandonado as bandeiras de defesa da soberania nacional. Assume uma feição de nacionalista de direita ao encarar as bandeiras nacionais totalmente autonomizadas das reivindicações dos movimentos sociais. Esse é o novo Aldo Rebelo que já nasce velho, conservador, anti-esquerda.

Desses três personagens em questão somente Requião se mantem no campo da crítica, sem fazer uma oposição ao governo, mas chama a uma mudança de rumos. Ciro e Aldo colocam-se no campo da oposição, Ciro aberta e ferozmente, Aldo com um manso disfarce. Aldo é o que faz o movimento mais profundo, da esquerda à direita, engajado em um projeto conservador.

Como é de costume acontecer em casos deste tipo todos se acham coerentes e levantam críticas algumas das quais têm base real. O problema central é que por esse mecanismo de unilateralidade desconhecem ou encobrem a questão crucial, o ponto forte e fundamental do governo de Lula, a defesa intransigente da democracia. Nesse terreno o governo tem conquistado vitórias importantes sobretudo quando desmascara as gravíssimas manobras golpistas perpetradas por Bolsonaro et caterva.

Nem uma palavra também quanto a importantíssima linha da política internacional adotada pelo governo, alinhada aos Brics e à construção de uma ordem multipolar de paz e desenvolvimento das nações. Ou ainda quanto aos avanços na área da Ciência e Tecnologia. Como se pode fazer uma análise crível sem abordar esses assuntos?

A realidade deve ser encarada no seu conjunto sem desconhecer, porém, os impasses que prendem o governo: propondo mudanças e transformações pode se isolar no Congresso nacional de maioria conservadora, de direita e de extrema direita. Não propondo, tende a se isolar do povo. Pelo menos três pesquisas recentes mostram igualmente uma certa queda na avaliação positiva do governo e do presidente. Então como seria possível avançar com uma correlação de forças desfavorável?

Diante das dificuldades e das pressões constantes do Centrão, Lula para se equilibrar e foi fazendo sucessivamente ajustes no governo que acabaram por dar-lhe um caráter mais centrista. Mas isto tem que ser visto tanto pela composição ministerial como pelos programas que o governo luta por implementar. Essa não é, portanto, a mesma opinião de Requião nem de José Dirceu que com ele concordou. Além da correlação de forças desfavorável deve-se ter em conta que o PT como um partido democrático, reformista tende naturalmente à conciliação menosprezando a importância da mobilização social, nas praças e nas ruas, para que se conquistem vitórias. Tem ainda um amplo apoio popular, mas se distanciou muito das bases.

O que os setores mais consequentes da esquerda devem insistir em fazer em uma situação como essa? Eles devem preservar os aspectos positivos do governo, sua característica principal. Há que se fazer críticas sim, porém construtivas, visando fortalecer as propostas mudancistas.

*Frente Ampla e fortalecimento do núcleo da esquerda buscando aprofundar o caráter democrático do governo tendo como alvo a ultra-direita bolsonarista e a neutralização dos setores conservadores. Trabalhar com essa orientação política nas eleições municipais que se aproximam afim de acumular forças para 2026;

*Insistir na mobilização popular como única forma possível para sair do impasse. Aos partidos de esquerda e suas principais lideranças cabe mobilizar o povo, e não exclusivamente ao movimento sindical e popular. Isso poderia ser sintetizado na consigna Vamos pra rua com Lula!;

*Adotar bandeiras econômicas e sociais que permitam a retomada imediata do desenvolvimento com base no investimento público e privado, bem como a melhoria das condições de vida da população tais como renegociação dos prazos e volumes de vencimento dos juros da dívida pública visando mudar imediatamente seu perfil, fortalecimento do caráter público da Petrobras, reestatização da Br Distribuidora, das refinarias da Petrobras e da Eletrobras. Política de preços dos combustíveis baseada no mercado interno, no interesse nacional. Afastamento do presidente neoliberal do Banco Central e adoção outra política de juros, baixos, que se coadune com o objetivo do desenvolvimento nacional. Taxação da renda dos superricos tanto dos lucros como dos dividendos. Isenção do IR para as camadas mais pobres. Política de reajustes do salário-mínimo para trazer melhoria substancial na renda dos trabalhadores e aposentados, de acordo com as propostas do movimento sindical. Medidas efetivas de Reforma Agrária de acordo com as reivindicações dos movimentos de trabalhadores pela terra;

*Azeitar o sistema de comunicação para que as conquistas efetivadas possam chegar ao conhecimento de amplas parcelas da população.

Dilermando  Toni

Jornalista, ex-editor do jornal A Classe Operária, membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz,

Por onde romper o cerco?

Francisco Celso Calmon

Quando um primo exonerado é causa para desestabilizar a harmonia entre os poderes, é sinal de que os alicerces da democracia institucional estão apodrecendo.

O jagunço da chantagem está em fúria, não tem estatura para o cargo, quando nutre e desaba pelo sentimento de desavença pessoal e postura da ameaça e intimidação, típicas de chefe mafioso.

Como seus meses de presidente da Câmara Federal estão findando e o seu substituto pode não ser seu capacho, seu desespero aumenta.

Todo governo progressista se viu historicamente cercado pelos três êmes, militares, mídia e mercado; o atual ainda conta com um Congresso extremamente hostil, composto por conservadores e reacionários, de natureza ideológica neonazifascista, dentro de um contexto internacional beligerante e de avanço da extrema direita. 

E tal qual um quinta-coluna, o Bob Neto, presidente do BC, trabalha contra o Brasil, sabota a política econômica do governo. Representando os interesses dos rentistas e dos alienígenas, prestes a encerrar o mandato, está aumentando a sua ousadia e articulando com seus colegas bolsonaristas no Legislativo quer aumentar a independência do Banco Central, fazendo dessa autarquia um poder autônomo e sem controle dos poderes republicanos.

O que hoje prejudica o governo Lula, amanhã pode estar prejudicando o próximo governo. O calendário de renovação dos diretores favorece ao governo anterior, de maneira que o governo eleito pode sofrer sabotagem como o atual está, basta que o governo posterior seja de oposição ao anterior.

Cercado por todos os lados, ensina a estratégia escolher o lado menos resistente para romper ou flexibilizar o cerco. Qual será?

Virar uma página significa ter lido-a, entendido, e resolvido suas consequências deletérias.  Enquanto estiver processando, a página da história não deve ser virada.

As tréguas com o imperialismo serão sempre efêmeras, circunstanciais e de interesses dos EUA.

As atuais gerações devem se inspirar na geração internacional do ano de 1968 e retomar a nossa luta antes que se tornem cúmplices da tragédia neonazifascista que abate sobre o mundo. É preciso dizer Não às guerras, é preciso dizer Não à barbárie, é preciso dizer Não ao capitalismo predatório. É preciso dizer Sim à paz, é preciso dizer Sim à civilidade, é preciso dizer Sim ao sistema socialista como alternativa ao capitalismo, é preciso sobretudo dizer Sim à democracia.

É imperioso que as atuais gerações combatam a alienação produzida pelas redes sociais e empunhem as bandeiras que permanecem atuais e foram erguidas pela geração do ano que politicamente não acabou – 1968.

Havia um movimento internacional de rebeldia da juventude e de trabalhadores contra os costumes burgueses e o sistema econômico, e no Brasil havia uma luta de resistência à ditadura, oriunda do golpe de 1964, que derrubou o projeto de nação do legítimo governo de João Goulart.

Projeto argamassado pelas reformas de base, as quais até o presente não foram realizadas e nem retomadas como bandeiras de lutas, substituídas pelo objetivo das três refeições.

Alimenta a barriga, mas não produz sonho, não acalenta a utopia de um mundo de paz, abundância, solidariedade e felicidade.  Não galvaniza corações e mentes. É o pragmatismo de curto prazo. É o aqui e agora, num processo de alienação da atual contradição principal entre o fascismo e a democracia.

Juventude que não é revolucionária, é geração sem ideal, desprovida de sonho coletivo, sem ser protagonista do vir a ser da história.  

Ressuscitar a luta contra o imperialismo anglo-americano é tarefa imperiosa.

Parece que Lula escolheu o lado militar para romper ou flexibilizar o cerco. Somente assim haverá um pouco de lógica em sua atitude de censura ao seu governo de rememorar o golpe de 64 com denúncia e indignação.

A justiça de transição foi a moeda de troca!

Nós da Rede Memória, Verdade e Justiça – RBMVJ – não aceitamos, não negociamos os nossos direitos de reparação aos mortos e desparecidos pela ditadura militar, aos anistiandos na torturante fila que não anda, bem como ao dever do Estado em criminalizar os golpistas de ontem e de hoje – será a justiça reversa. 

Francisco CelsoCalmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Foi líder estudantil no ES e Rio de Janeiro. Participou da resistência armada à ditadura militar, sendo sequestrado e torturado. Formado em análise de sistemas, advocacia e administração de empresas. Foi gestor de empresas pública, privada e estatal. Membro da Frente Brasil Popular. Autor dos livros “Sequestro moral e o PT com isso?” e “Combates pela Democracia”, coautor dos Livros “Resistência ao Golpe de 2016” e “Uma sentença anunciada – O Processo Lula”. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Articulista de jornais e livros, coordenador do canal Pororoca.

O Programa Brasil Sem Fome (PBSF)

Jean Marc von der Weid

Introdução: a soma das partes não faz, necessariamente, um todo

Governos, de todas as cores, têm a mania de formular grandes programas através do artifício de reunir ações públicas em curso, espalhadas em vários ministérios, sob um “chapéu” novo e uma boa dose de publicidade.

Pelo que pude deduzir lendo as 4 páginas (em letras miudinhas) do decreto do presidente Lula em dezembro de 2023, instituindo a Política Nacional de Abastecimento Alimentar e dispondo sobre o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar e as 50 páginas do Plano Brasil Sem Fome (PBSF), estamos diante de um repeteco desta abordagem.

Da elaboração do PBSF participaram 22 ministérios, a Secretaría Geral da Presidência e a Casa Civil, representados por 127 gestores e técnicos depois de 40 reuniões, inclusive com dezenas de interlocutores da sociedade civil. O PBSF se organiza em três eixos e em cada um deles apresenta vários desafios e as atividades a serem promovidas (financiadas) por múltiplos entes do governo. Em cada um dos eixos e desafios encontramos elementos de análise que buscam justificar as propostas de ação.

Não vou analisar a proposta do PBSF em detalhe, o que seria cansativo e provavelmente inócuo, mas quero apontar para algumas carências cruciais neste planejamento.

Quais as causas da crise alimentar brasileira apontadas no PBSF?

O PBSF não apresentou nenhuma análise de fundo sobre as causas da presente crise agroalimentar nacional. O fato de que as centenas de técnicos e responsáveis governamentais e da sociedade civil implicados neste planejamento têm grandes diferenças políticas e de entendimento do problema pode ter sido o fator inibidor de um exercício de diagnóstico aprofundado.

Poderíamos resumir a análise em uma única frase:  o PBSF considera que os governos de Lula e de Dilma estavam resolvendo o problema da fome no Brasil com as políticas de aumentos reais do salário-mínimo e o Bolsa Família. A “prova” é o fato de que a FAO retirou o Brasil do mapa da Fome. A crise atual é causada pelos governos de Temer e de Bolsonaro que deixaram um legado de 33 milhões de famintos (insegurança alimentar grave), além de 90 milhões em situação de insegurança alimentar moderada (Rede PENSAN).

O PBSF não avaliou as variações dos valores reais dos auxílios, quer por correções feitas pelos programas, quer pelas perdas provocadas pela inflação dos alimentos.

Quando criado, o Bolsa Família pagou um valor médio de 73 reais e suas correções chegaram a um valor de quase 200,00 reais em 2018, mas se tivesse acompanhado a inflação geral teria que pagar 50,00 reais a mais.. Se a correção fosse pela inflação dos alimentos esta perda seria de cerca de 100,00 reais. O governo Bolsonaro congelou os pagamentos do BF até a criação do “seu” programa, chamado de Auxílio Brasil, em dezembro de 2021. O AB pagou, inicialmente, 400,00 reais por família, ampliados para 600,00 em agosto, às vésperas das eleições. No começo da pandemia o Congresso Nacional criou o Auxílio Emergencial, distribuindo 600,00 reais por mês por família.

Usando como parâmetro a relação dos aportes dos programas com o salário-mínimo, o BF pagou, em média, 42% e o AB, no seu valor mais alto, pago por 4 meses, 50%. No início do BF, em 2004, o auxílio pagava uma cesta básica, mas com o tempo e a inflação dos alimentos foi perdendo poder de compra. Nada disso foi discutido no PBSF, nem feita nenhuma reavaliação dos valores necessários para garantir uma dieta apropriada para as famílias beneficiárias.

Um diagnóstico mais preciso indicaria as causas da situação de insegurança alimentar dos diversos segmentos deste público diferenciado, os 127 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar grave ou moderada. Seria muito importante para pensar o futuro entender por que, por exemplo, encontramos um grande número de domicílios de agricultores familiares (21,8% ou 850 mil) que estão em situação de IAGrave. Parece paradoxal que pessoas dedicadas à produção de alimentos sejam famintas, mas tudo tem explicação que necessita de ser apontada.

O jornal O Globo de 20/4/2024 divulgou os resultados de pesquisa do IBGE e as conclusões da Fundação Getúlio Vargas para as variações na distribuição de renda, apontando para uma redução do número de pessoas em extrema pobreza da ordem de 11,6 milhões em relação ao ano de 2021. Mas quem lê a matéria tende a concluir que ela indica uma forte redução no número de famintos, resultado da confusão induzida pela reportagem, que introduz os números encontrados na pesquisa da Rede PENSSAN para o ano de 2021, 33 milhões.

Desde logo, não há convergencia nos números da pesquisa da Rede e os dados do IBGE. Por estes últimos, o número de pessoas em extrema pobreza em 2021 (data da pesquisa da Rede) era de 28,7 milhões. Isto se explica por diferenças de objeto das duas pesquisas, o que o artigo confunde. Um estudou indicadores de insegurança alimentar e o outro o nível de renda. Embora as pessoas em situação de extrema pobreza certamente estarão entre os famintos, muitos que não se encontram entre os primeiros podem estar entre os segundos. A melhoria da renda, efeito dos auxílios (Brasil e Bolsa Família) e, neste governo, a recuperação do emprego e a valorização do salário-mínimo não garante a melhoria da situação alimentar. O endividamento de mais da metade das famílias brasileiras, efeito da pandemia, do desemprego e da precarização do trabalho no governo Bolsonaro, estava elevadíssimo no início de 2023 e parte do recurso dos auxílios foi consumida em pagamentos de atrazados.Vai ser preciso esperar uma nova pesquisa da Rede para podermos ter uma ideia mais precisa do tamanho dos vários públicos alvo do PBSF, os famintos, os subnutridos e os malnutridos.

Quais as metas definidas para o PBSF?

Embora falhando no quesito diagnóstico de causalidade, o preâmbulo do PBSF apresentou, de forma às vezes contraditória ou incoerente, um quadro da situação de insegurança alimentar grave e moderada. Este apanhado está suficientemente detalhado para que o PSBF pudesse ter definido um conjunto de prioridades e metas a serem alcançadas, coisa que o documento não mostrou, a não ser de forma genérica:

– Tirar o Brasil do Mapa da Fome da FAO (aqui há uma meta implícita, de aumentar a ingestão calórica até o mínimo básico, dirigida a 33 milhões de famintos).

– Reduzir a insegurança alimentar e nutricional, em particular a insegurança alimentar grave. (quanto?).

-Reduzir ano a ano as taxas de pobreza da população. (qual a redução total ambicionada?)

Na primeira meta, é preciso ficar claro o que é o Mapa da Fome da FAO. Este Mapa inclui apenas as pessoas que têm uma ingestão calórica diária menor do que a indicada como vital pelos nutricionistas, em média 2100 calorias. É notório, no entanto, que muitos dos que ingerem este mínimo vital podem ser carentes em outros quesitos, em particular as proteínas. Ou seja, ingerir calorias acima do mínimo vital não significa que tenha sido superada a insegurança alimentar grave.

Talvez por isso a segunda meta tenha sido colocada, visando uma dieta mais adequada e isto fica reforçado pela definição de uma nova cesta básica mais equilibrada. Preocupa-me esta divisão em duas metas distintas, quando existe uma forte tendência no Brasil da adoção de dietas ultracalóricas e pobres em proteínas, sais minerais e vitaminas. Existe uma parcela do público, não quantificada até agora de forma precisa, que padece de insuficiência proteica e de micronutrientes e que sofre, simultaneamente, de obesidade ou excesso de peso por ingestão exagerada de calorias. Ter como meta primeira ampliar a ingestão calórica dos famintos só reforça este grave estado nutricional dos mais pobres.

Pelos próprios dados apresentados, seria possível e muito necessário que se afirmassem as seguintes prioridades:

– Atacar em primeiro lugar a insegurança alimentar grave, visando não apenas a ingestão calórica, mas uma dieta mais balanceada do ponto de vista nutricional.

Não sabemos com segurança quantos são estes mais desvalidos. Segundo o inquérito da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSAN) de 2022, 33 milhões de pessoas passavam fome. Já o relatório da FAO de 2023, usando critérios diferentes, apontou para a existência de 21,1 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar grave (IAGrave). Estes números tão discrepantes, citados no preâmbulo do PBSF, com uma diferença no número de famintos da ordem de 30%, tornam urgente uma análise que permita adotar uma avaliação consistente para balizar as metas do programa.

– Priorizar os famintos rurais, 6 milhões de pessoas,18,2% do público-alvo prioritário total (PENSAN) ou 3,8 milhões, também 18% (FAO).

– Priorizar os famintos das regiões norte e nordeste, 4,8 e 12,1 milhões de pessoas ou 14,5 e 36,7% do total (Rede PENSAN), ou 3,045 e 7,7 milhões (FAO) em particular os rurais (cruzando com os dados do item anterior).

– Priorizar populações particularmente vulneráveis como indígenas, quilombolas, acampados e assentados da reforma agrária, urbanos em situação de rua, buscando colocar números nestes distintos públicos e sua localização, de forma a poder planejar concretamente as atividades e seus custos.

– Priorizar beneficiários do Bolsa Família, sobretudo famílias chefiadas por mulheres e com muitos filhos em zonas rurais e urbanas. Idem.

São muitas as metas que podemos classificar como prioridades de segundo nível e que se dirigem aos famintos de várias categorias de outras grandes regiões (Sudeste, Sul e Centro-oeste), lembrando que nestes casos a predominância de urbanos é muito maior, em números absolutos e em percentual. E um terceiro nível de prioridade seria o da população em situação de segurança alimentar moderada, a exigir uma pesquisa mais detalhada para poder ser corretamente identificada e quantificada.

A questão da renda mínima

Analisando o primeiro dos eixos definidos no PBSF, o “acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania” encontramos elementos já bem colocados desde a instituição do Bolsa Família. Desemprego e baixa renda são indicadores que caíram durante os governos populares, começando uma reversão no segundo governo da presidente Dilma para se agravarem nos dois governos seguintes.

É preciso lembrar que a melhoria de emprego e renda ocorrida desde o governo de FHC e ampliada nos governos populares, não teve um efeito significativo na melhoria da dieta dos mais pobres, embora tenha melhorado a ingestão calórica. Isto se explica por dois fatores importantes: o primeiro é que os gastos das famílias não são definidos apenas pelas necessidades da compra de alimentos. Gastos essenciais, como aluguéis, transportes, saúde, educação, energia, vestuário e comunicação, competem com os gastos em alimentos.

Apesar dos progressos na renda dos mais pobres, estes outros gastos empurram as famílias a despender o mínimo possível com a alimentação e isto significa a adoção de dietas mais baratas e que são mais pobres do ponto de vista nutricional. De fato, o Bolsa Família tornou-se um programa de renda mínima e não um programa de alimentação, no sentido mais estrito. E como programa de renda mínima ele distribui valores complementares à renda familiar insuficientes para cobrir o conjunto das necessidades básicas das famílias, levando ao sacrifício da qualidade alimentar.

Centrar o enfrentamento da questão da insegurança alimentar e nutricional na distribuição de recursos financeiros implicaria em aumentar muito os valores deste aporte e, ainda assim, não seria bem-sucedido se não for aumentada a oferta de alimentos adequados em quantidade, qualidade e preços acessíveis.

A questão da oferta de alimentos

Com estas observações, chegamos ao ponto crucial do PBSF, o segundo eixo: “segurança alimentar e nutricional – alimentação saudável da produção ao consumo”.

Em primeiro lugar, é preciso entender a dinâmica do mercado que define os preços da cesta básica, aquela definida em 1937 no governo Vargas ou a nova cesta, definida em 2024 no governo Lula.

O decreto que instituiu a nova cesta não acompanhou o de Vargas na quantificação desejável do consumo de cada produto, o que torna impossível calcular os custos de uma alimentação saudável indicada por ele, assim como qual o aumento da oferta de alimentos que seria necessário para atender a uma demanda expandida.

O governo Lula está propondo a isenção de impostos para uma parte dos itens da cesta, enquanto outros teriam reduções de 40%. Mesmo sem a indicação quantitativa do consumo alimentar e nutricional desejável, é evidente que o custo da nova cesta será maior do que a atual. Em artigo anterior utilizei um estudo do Instituto de Medicina Social da UERJ, que foi mais longe e definiu uma dieta “correta” em qualidade e quantidades de cada produto, chegando (com preços atualizados pela inflação de alimentos) a valores próximos de 1400,00 reais mensais para uma família de dois adultos e duas crianças.

Como a nova cesta não vai alterar a base de cálculo do salário-mínimo, haverá um déficit na capacidade de compra de alimento das famílias. Na verdade, este déficit já existe, mesmo usando o custo mais baixo da cesta tradicional. Para comprar a cesta indicada no decreto de 1937 a família teria de comprometer 57% do salário-mínimo, o que é inviável dadas as outras despesas necessárias. Já o custo da cesta básica desejável, calculado pela UERJ, consumiria a totalidade do atual salário mínimo.

Desonerar os produtos da cesta básica é algo que já foi feito no governo de Dilma, sendo aplicado sobre a cesta tradicional. O efeito sobre o consumo alimentar das famílias não foi significativo, sobretudo porque os preços dos alimentos aumentaram mais do que as desonerações.

Tudo isto indica que não basta indicar uma cesta alimentar ideal, mesmo se quantificada, se os valores da renda dos mais pobres não cobrem os custos, alimentares e outros. Pode-se pensar, e parece que é o caso dos técnicos do governo, que os recursos do Bolsa Família cobririam estas diferenças entre a renda auferida e o custo da alimentação. Não foi o caso no modelo do BF nos governos populares entre 2004 e 2016, nem no programa equivalente definido pelo Congresso em 2020, que elevou os valores distribuídos em 300%.

Alguns analistas explicam este processo a partir da dinâmica dos preços dos produtos básicos, quase sempre acima e muitas vezes o dobro da inflação média da economia. E isto nos leva a nos perguntar por que isto acontece.

Existem dois fatores pressionando os preços dos alimentos para cima de forma persistente. Por um lado, houve um processo de capitalização da produção de alimentos básicos como feijão, arroz, trigo e milho. O modelo adotado pelo agronegócio (e pelo “agronegocinho” da agricultura familiar) implica em custos mais altos pelo uso de adubos químicos, sementes melhoradas, agrotóxicos e maquinário (com custos menores com mão de obra). Teoricamente, esta modernização levaria a uma queda nos preços unitários dos produtos, em função de um esperado aumento no rendimento das culturas. Acontece que, depois de um salto inicial nos rendimentos, estes estagnaram e cobraram maior uso de insumos para sua manutenção. E o custo destes insumos não parou de crescer, aqui ou no resto do mundo, sobretudo pelas maiores dificuldades de se conseguir matéria prima para energia, adubos e agrotóxicos. A instabilidade climática, com secas e inundações cada vez mais frequentes e intensas, também ajudou a derrubar os rendimentos destas culturas alimentares (e de todas as outras, é claro).

Mas o efeito mais importante na redução da oferta de alimentos básicos no Brasil está em outra causa: a diminuição da área cultivada de forma sistemática. Este fator tem como raiz a competição entre os produtos alimentares e as commodities de exportação. Os mercados internacionais de soja, milho, açúcar e carnes (entre outros) são mais atraentes para os produtores do agronegócio do que o mercado interno de produtos alimentares, sobretudo aqueles de consumo da massa de menor poder aquisitivo.

Por outro lado, os produtores familiares mais capitalizados, que até 1985 colocavam a maior parte dos produtos alimentares de base no mercado, deixaram de lado este foco e passaram a se dedicar, como os produtores do agronegócio, ao cultivo de commodities e à criação de gado. Hoje a contribuição da agricultura familiar para a produção de alimentos está, em valor, entorno de 25% enquanto o resto está nas mãos do agronegócio.

Esta mudança se explica pelo impacto das políticas de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar adotadas pelos governos de FHC, Lula e Dilma. O crédito facilitado e a assistência técnica, conduziram perto de 500 mil agricultores (12,5% do total) a adotarem o modelo produtivo dito moderno, com o uso intensivo de insumos e máquinas. Muitos (em um cálculo ainda estimativo, perto de 125 mil) quebraram e abandonaram o campo, mas os mais eficientes (ou mais bem dotados em termos de condições de produção) verificaram que era mais seguro e rentável produzir commodities do que alimentos de consumo de massa e muitos trocaram de foco.

E porque será que as commodities são mais atraentes do que arroz, feijão, milho, trigo e mandioca? Por óbvio, o mercado de alimentos está balizado pelo poder de compra da renda auferida pelas famílias consumidoras e essa renda sempre esteve aquém das necessidades, alimentares ou outras, das famílias mais pobres e até das remediadas.

Os preços mais altos dos alimentos de base, pressionados pelos custos de insumos e pelos impactos climáticos, levaram a um processo de mudança continua na dieta dos mais pobres e mesmo dos remediados. O arroz com feijão foi substituído pelo arroz com ovo, depois pela massa (trigo) com salsicha e depois pela bolacha, pão ou miojo (trigo) com salsicha.

É claro que estes são elementos simbólicos e ninguém come apenas estes produtos, mas o cerne da questão é que, sob pressão dos preços dos alimentos e da renda baixa, as famílias foram se adaptando a consumir os produtos de menor preço: os ultraprocessados, apesar de sua menor qualidade nutricional. A população mais pobre (os 60 milhões do programa BF) e os remediados (67 milhões) vai adotando uma dieta que se resume a “encher barriga”, implicando na pandemia de desnutrição, subnutrição e obesidade que nos assola e que incide no aumento exponencial de enfermidades como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.

Por outro lado, esta diminuição do consumo dos alimentos de base citados acima inibe a ampliação da produção, criando um círculo vicioso. O volume de produção de feijão e arroz, por exemplo, está estagnado há décadas, enquanto o consumo per capita vai caindo regularmente.

O desafio de aumentar a oferta de alimentos no Brasil é enorme. O PBSF coloca esta necessidade, mas não tenta quantificá-la. Sem metas de produção a proposta fica repetindo as políticas de incentivos do passado, sobretudo a ampliação do crédito, que não alcançaram os resultados esperados.

Qual seria o aumento necessário da produção de alimentos para atender à demanda de uma população corretamente nutrida?

A título de exercício demonstrativo, vamos analisar um dos produtos essenciais desta dieta desejável, pesquisada pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Calculei, em outro artigo, que o déficit da produção de feijões (preto, de cor ou fradinho) seria de 10 milhões de toneladas, sendo que a produção nacional estagnou em 3 milhões há muito tempo, equilibrado com a demanda do mercado. Ou seja, para suprir a demanda ideal (incrementada) dos consumidores nacionais a produção teria que quadruplicar, pelo menos. E quais tipos de produtores poderiam dar esta resposta maciça em termos de aumento de oferta?

A produção de feijões do agronegócio (CONAB, 21/22) chegou a 2.340.000 toneladas e a dos agricultores familiares tradicionais e dos capitalizados chegou a 659.000 toneladas, 78% e 22% respectivamente. Os primeiros colocaram 89% da sua produção no mercado e os segundos 55%, as diferenças se explicando pelo autoconsumo. O abastecimento do mercado nacional de feijão foi de 2,445 mil toneladas, sendo que 14,8% vieram da produção familiar e 85,2% da agricultura patronal.

Isto indica que o esforço do governo para quadruplicar a produção de feijões deveria estar centrada na categoria dos produtores do agronegócio, cerca de 309 mil agricultores. No entanto, apenas 6 mil agricultores, com área de propriedade entre 20 e mais de 500   hectares, respondem por cerca de 60% da produção atual. Cerca de 20 mil agricultores familiares capitalizados, com área de propriedade entre 5 e 100 hectares, seriam um alvo secundário. Cerca de 1,2 milhão de agricultores familiares tradicionais com área de propriedade entre zero e cinco hectares seriam um alvo terciário, se levarmos em conta como critério apenas o potencial de oferta ampliada de feijão necessária para atender a demanda de uma dieta correta para todos os brasileiros.

Mais do que triplicar a produção dos feijões pode ser conseguido de três maneiras:

– Aumentando o rendimento da cultura de feijão.

Os produtores tradicionais de feijão, de tipo familiar e não capitalizado, obtiveram rendimentos de 650 a 850 quilogramas por hectare. Já os produtores modernizados, os grandes e médios empresários do agronegócio chegaram a 1200 kg/ha, em média. No entanto, os produtores de Goiás e de São Paulo alcançaram rendimentos médios de 2600 kg/ha e 2380 kg/ha respectivamente. O rendimento médio nacional para todos os produtores está em 1090 kg/ha (Censo IBGE de 2022).

O rendimento máximo na produção de feijão em sistemas convencionais no Brasil foi obtido pela Empresa de Pesquisa Agropecuária (EPAGRI) de Santa Catarina, utilizando variedades de alta produtividade e todo o pacote de insumos químicos, chegou a 4000kg/ha. Se este pacote fosse aplicado por todos os agricultores de feijão o aumento dos rendimentos seria de 530% para os familiares tradicionais e de cerca de 330% para os modernizados do agronegócio.

Experiencias de produção agroecológica de feijão apontam para rendimentos de até 3200kg/ha em sistemas diversificados complexos que incluem outros produtos na mesma área cultivada, o que inviabiliza a mecanização da colheita e limita esta produção a uma pequena escala, mais adequada para a agricultura familiar.

Chegar a generalizar os rendimentos indicados pelas pesquisas da EPAGRI (ou os da agroecologia) não vai ser coisa fácil.

Em primeiro lugar, porque este sistema mais avançado, dentro da lógica do agronegócio, foi formulado para a produção de feijão preto ou de cor nas condições de Santa Catarina e seria preciso desenvolver variedades adaptadas para o resto do país, em particular para a produção de feijão fradinho no Nordeste.

Em segundo lugar, porque a conversão de cerca de 1,2 milhão de produtores familiares tradicionais, localizados sobretudo no Nordeste, para sistemas capitalizados seria uma tarefa hercúlea e de alto risco, dadas as condições ambientais da região. Lembremos ainda que estes são agricultores de muito baixa renda, sem acesso ao crédito e à assistência técnica e com baixa inserção nos mercados. No entanto, convertê-los para a agroecologia em pequena escala é algo factível a partir de experiências já avançadas promovidas pela sociedade civil. Como já foi dito, esta última opção pode ter importante efeito social e retirar milhões de famílias rurais da situação de insegurança alimentar e até do Bolsa Família, mas sem efeitos maiores na oferta de feijão no mercado nacional.

– Aumentar a área cultivada dos atuais produtores.

No que tange a agricultura tradicional, em particular a nordestina, a disponibilidade de área é muito limitada para ser pensar nesta hipótese, já que mais de um milhão deles tem áreas menores do que um hectare. Já os agricultores familiares do agronegocinho dispõe de, em média, de 30% de sua área total para ampliar cultivos, mas provavelmente teriam que abandonar outras culturas e centrar na produção de feijão, o que os tornariam mais vulneráveis a eventos climáticos, ataques de pragas e flutuações de mercado.

A melhor possibilidade de expandir a área cultivada está nos grandes e médios produtores do agronegócio, que dispõe de área para expandir os cultivos e domínio das práticas agronômicas (convencionais) necessárias. Sem garantias de preços, créditos facilitados e mercado assegurado isto não vai ser possível.

– Atrair novos produtores de feijão.

Isto depende, sobretudo, de se criarem condições competitivas para este produto. Isto não vai ser fácil dada a consolidação de cadeias produtivas de exportação (como a da soja) com preços atrativos. Além disso, o risco que um agricultor teria que assumir ao abandonar a soja, por exemplo, para uma cultura mais delicada como a do feijão não deixa de ser um fator inibidor. Mais uma vez e mais enfaticamente, o governo teria que garantir créditos, preços e mercado que tornem competitiva a produção de feijão frente à das culturas de commodities.

O exercício acima, centrado no feijão, teria que ser feito para todos os produtos da nova cesta básica, começando pelos que já estavam incluídos na anterior, como arroz, milho, mandioca e trigo. Em todos eles haveria que se conseguir o aumento significativo do volume produzido anualmente. Será desafiador, em particular, aumentar a produção de hortaliças na quantidade exigida pela demanda aquecida por um programa dirigido à adoção de uma dieta correta.

Educação alimentar

Há outro fator a ser considerado nesta equação. Os hábitos alimentares dos mais pobres vem sendo condicionados há bastante tempo pela baixa renda e os altos preços e seria preciso um esforço enorme de educação alimentar para que seja adotada uma dieta correta do ponto de vista nutricional, mesmo garantida a renda necessária e a disponibilidade de alimentos.

O governo pode garantir a oferta de merenda escolar com uma dieta correta, desde que aumente significativamente os recursos orçamentários deste programa, mas não pode garantir que os aportes do Bolsa Família, mesmo incrementados, sejam utilizados pelas famílias para a adoção da dieta correta. E os mais pobres tem outras limitações, como o custo da energia (preço do botijão de gás) para o preparo das refeições ou o tempo necessário para este fim.

Será fundamental formular um amplo programa de educação alimentar de forma a garantir que a expansão de renda e da oferta dos produtos alimentares adequados resulte em uma mudança da dieta hoje vigente.

Qual o papel da agroecologia em uma política de eliminação da fome e de adoção de uma dieta correta do ponto de vista nutricional?

Já indiquei, em outros artigos, o potencial da agroecologia para responder a várias das limitações do atual sistema agroalimentar. No entanto, a inevitável e necessária transição para uma agricultura de base ecológica não pode ocorrer em prazos curtos.

O PBSF deveria adotar, na medida do possível, incentivos para facilitar a transição agroecológica, mas fixando metas praticáveis nas condições atuais. Isto seria mais viável, a meu ver, em um programa dirigido aos agricultores tradicionais. Seria possível, do ponto de vista do conhecimento agronômico e de assistência técnica, promover a produção diversificada de base agroecológica para microprodutores tradicionais, garantindo a autossubsistência com a adoção de uma dieta correta.

O MDA lançou um programa intitulado “Quintais Produtivos” que pode ser dirigido a uma produção agroecológica. Existem inúmeras experiências deste tipo promovidas pela sociedade civil, com amplo sucesso, que podem servir de modelo para reprodução em escala. Mas o programa está subdimensionado, quer nos valores identificados para cada família (10 mil reais), quer no número de famílias abrangidas (100 mil).

Não é viável propor que os produtores capitalizados de feijão, trigo, arroz, milho ou outros produtos alimentares, já acostumados ao modelo agroquímico e motomecanizado, possam ser convertidos aos sistemas agroecológicos em massa e em prazos curtos. A necessária e urgente expansão da produção de alimentos não vai ser conseguida por este tipo de conversão agroecológica com a necessária rapidez, já que exige alguns anos para ser completada. Mas é possível induzir a adoção de algumas técnicas desta necessária mudança de longo prazo.

Práticas bem conhecidas desenvolvidas por empresas de pesquisa como a EMBRAPA, as estaduais ou as universidades agrárias, podem ser disseminadas pela assistência técnica e condicionadas por créditos mais facilitados. É o caso, por exemplo, da adoção do Manejo Integrado de Pragas e doenças (MIP), que deve ser combinado com uma política de redução dos subsídios dos agrotóxicos e pela eliminação dos produtos mais perigosos, hoje largamente utilizados. A adoção do MIP, promovida pela FAO nas Filipinas, por exemplo, permitiu a redução do uso de agrotóxicos em 70%. Tudo isso tem a ver com as políticas de crédito, de seguro e de assistência técnica.

Como enfrentar os constantes aumentos de preços de fertilizantes?

O Brasil depende de importações de fertilizantes em quase 80% da demanda atual. Com um programa de expansão de produção de alimentos em larga escala esta demanda vai ficar ainda mais aquecida e os preços vão subir. A escalada dos preços do petróleo (15% apenas neste começo do ano) também vai pressionar o custo da fertilização. A curto prazo, mas muito mais a médio e longo prazos, o nosso déficit na produção de adubos vai ser dramático. É preciso adotar formas de substituir este insumo, já que não dispomos de reservas de fósforo e potássio que cubram mais do que uma pequena fração da demanda.

O governo deveria adotar um programa nacional de compostagem de lixo orgânico e de lodo de esgoto para enfrentar a carência nacional na produção de adubos. Estudos promovidos pela FINEP há muito tempo têm todos os elementos técnicos e de avaliação econômica e agronômica. No entanto, se tal programa for implementado e deixado à mercê do mercado, é mais do que provável que o agronegócio da soja iria competir pela apropriação deste insumo e a produção de alimentos poderia ficar marginalizada, mais uma vez.

O problema da irrigação

Outro programa fundamental a ser aplicado em larga escala é o financiamento de infraestruturas hídricas capazes de captar e estocar a água das chuvas para promover a irrigação. Este programa já existiu nos governos populares anteriores, mas em pequena escala e ainda não foi retomado.

As experiências com este tipo de infraestruturas hídricas produtivas foram promovidas pela sociedade civil no Nordeste, mas seria importante começar a adaptá-las para outras regiões, dada a crescente irregularidade das chuvas em todo o país. O programa anterior, chamado de “Uma Terra e Duas Águas”, pagava a construção de uma cisterna para uso caseiro e de uma infra hídrica para irrigação.

Existem vários modelos de infra hídrica para este fim, mas a mais comum foi desenvolvida pela Embrapa Petrolina e chama-se cisterna calçadão. Ela permite irrigar de meio a dois hectares de cultivos. Isto é suficiente para o programa dos quintais, citado acima, mas para roçados maiores seriam necessários outros modelos, mais caros. Para dar uma dimensão estimada de custos, dotar os produtores nordestinos com menos de dois hectares de terra (cerca de um milhão) de uma cisterna calçadão (uns vinte mil reais) custaria ao programa 20 bilhões. Já o apoio à produção agroecológica diversificada tem outros custos a calcular.

Para concluir, é preciso dar concretude e definir metas viáveis para o programa, detalhando as políticas específicas e garantindo a sua articulação coerente. E, “last but not least”, seria importantíssimo que o governo negociasse com os diferentes tipos de produtores para engajá-los nesta tarefa hercúlea de promover um novo sistema agroalimentar nutricionalmente correto.

A criação de uma estrutura estatal para tratar de forma integrada do problema da alimentação em todas as suas dimensões seria muito recomendável, superando estas fórmulas de agregar no papel dezenas de departamentos de vários ministérios, sem que tenham a possibilidade real de integrarem seus esforços. Tal estrutura já existiu no passado e podia voltar à vida, tal a importância desta questão. Trata-se do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, criado pelos militares em 1972 e extinto em 1997. Ao contrário dos tempos da ditadura, esta instituição deveria ter plenos poderes para mobilizar o Estado para enfrentar o problema endêmico da fome e da desnutrição.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.

POMBOS ADORAM TAPETES

Alexandre Santos – 04/2024

A parceria de gente marcada pelo chamado ‘Complexo de Pombo’ (que adora atrapalhar as pessoas e fazer titica por toda a parte) e marcada pelo chamado ‘Complexo de Tapete’ (que adora ser pisada por outras pessoas) pode, até, satisfazer a ambas, mas não produz coisa boa. Imagine que os bolsonaristas estão exultantes com as notícias de que o bilionário sul-africano Elon Musk ameaçou denunciar o ministro Alexandre de Moraes ao Congresso dos Estados Unidos e (mais exultantes ainda) [com notícias de] que o Comitê de Assuntos Judiciários da Câmara dos EUA divulgou relatório sobre ‘ataques à liberdade de expressão’ verificadas no Brasil, destacando
decisões de remoções de conta e de conteúdo nas redes sociais determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes e pelo TSE. Tudo isso é muito interessante, não só por tratar-se de uma baita Fakenews, mas, principalmente, porque, além de o órgão norte-americano nada ter a ver com coisas ocorridas fora dos Estados Unidos (que, como todo pombo, acha que o mundo lhe pertence e pode fazer titica sobre todo ele), diante do silêncio que guarda no caso Julian Assenge, lhe falta autoridade moral para opinar sobre qualquer assunto referente a ‘ataques à liberdade de expressão’. É interessante, também, porque destaca o tipo de visão tida por Elon Musk sobre o Brasil, entendendo-o talvez como uma república de bananas qualquer ou, quem sabe, como um protetorado dos Estados Unidos. Finalmente, este episódio contribuiu para confirmar o sentimento anti-nacional nutrido pela turma da Direita. De qualquer forma, mantendo sempre olhos abertos para a movimentação daquela patota (que não para de pensar em novos golpes contra a Democracia brasileira), o Brasil deve continuar a trabalhar para não só desfazer as desgraças cometidas no período Temer-Bolsonaro, mas, principalmente, para seguir em frente e alcançar patamares superiores de desenvolvimento.

Alexandre Santos

Alexandre Santos é engenheiro e escritor. Preside o Clube de Engenharia de Pernambuco e a Associação Brasileira de Engenheiros Escritores, presidiu a União Brasileira de Escritores e faz a coordenação nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural. Autor premiado com livros publicados no Brasil e no exterior, Alexandre é o editor geral do semanário cultural ‘A voz do escritor’ e diretor-geral do canal ‘Arte Agora’.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A COR VERMELHA EM BANDEIRAS E NA HISTÓRIA DO BRASIL

HENRIQUE LUDUVICE

Em recente artigo, destacamos a presença da cor vermelha nas bandeiras da maioria dos países nos diversos continentes do Planeta Terra. Enfatizamos, ainda, o real significado dessas escolhas e inclinações, muitas delas vinculadas a renhidas disputas, às vezes longas e sangrentas, em busca da libertação e independência. Mas, há situações em que a referida coloração foi selecionada por aspectos específicos, cenários, vegetações ou minerais encontrados nas respectivas naturezas ou mesmo em símbolos de antigos colonizadores.

O Brasil foi, segundo a nossa história, descoberto por Portugal no ano de 1500, em um período que a Europa se expandia na procura por novas riquezas, territórios e horizontes. Embora já habitado por significativos contingentes de povos originários, iniciou-se, nesta época, uma colonização pautada em influências e valores daqueles que desembarcaram de suas caravelas e provinham de um continente com civilizações mais avançadas em inúmeros contextos.

Portanto, resta incontestável que as primeiras bandeiras que identificavam o Brasil, em sua fase colonial, refletiam as sucessivas casas imperiais portuguesas. Sempre que assumia um novo monarca no país dominante, suas insígnias de espraiavam pelos povos conquistados. Assim acontecia nas múltiplas terras desbravadas pelas nações europeias.

As inquestionáveis contribuições de Portugal ao Brasil, ao longo dos séculos seguintes, se manifestaram em imensuráveis áreas. Posteriormente, também a Espanha, França, Holanda e Inglaterra, em diferentes graus, se fizeram presentes durante a fase colonial deste País, legando colaborações para a formação das estruturas, principalmente regionais, aqui estabelecidas. Mais recentemente, grupos de imigrantes europeus atraídos por governos brasileiros e os EUA assumiram protagonismo nessa conjuntura.

Faz-se interessante salientar que todas essas Nações possuem diversificados matizes de vermelho em suas pendões e flâmulas, o que, naturalmente, se refletiu nos pavilhões que expressam a imagem de importantes Estados brasileiros e suas Capitais, bem como nos símbolos e marcas de expressivo número de Municípios e, até mesmo, de Instituições Culturais e Desportivas.

Examinando-se, acuradamente, as vinte e sete unidades da Federação brasileira, percebe-se que treze delas (Acre, Alagoas, Amazonas, Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Sul, Roraima, São Paulo e Santa Catarina) ostentam o colorado em suas bandeiras, enquanto uma, o Espírito Santo, exibe o rosa, tonalidade próxima.

Dentre as Capitais dos Estados conclui-se, em rápida pesquisa, que dezenove adotam o encarnado em seus pavilhões, a saber: Aracaju, Belo Horizonte, Campo Grande, Cuiabá, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, João Pessoa, Macapá, Maceió, Porto Alegre, Recife, Rio Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, São Paulo, Teresina e Vitória.

Em termos de esporte, verifica-se que o vermelho está presente nos anéis olímpicos e em incontáveis uniformes ou indumentárias de delegações, seleções e equipes de infinitas modalidades dos mais distintos locais, regiões ou nacionalidades. Em alguns casos, reproduzindo total ou parcialmente as cores estampadas nos símbolos dos Países, Estados ou Municípios.

A esta altura, impõe-se realçar que o brado exacerbado em determinadas manifestações públicas de que a nossa bandeira jamais será vermelha demonstra, portanto, um misto de ignorância ou desconhecimento sobre as incalculáveis aparições da mencionada coloração em numerosas situações ou circunstâncias do cotidiano da Nação.

Afinal, as bandeiras de relevantes Estados, Cidades, Escolas, Clubes ou mesmo de simples Agremiações adotam esta cor e seus concidadãos ou adeptos as envergam com substancial orgulho, sem, necessariamente, quaisquer conotações políticas ou ideológicas.

Os exemplos são muitos: alguém, por exemplo, poderia imaginar o Flamengo ou o Milan, em seus espetáculos, sem as épicas camisas e bandeiras rubro-negras? Ou o Manchester United, Bayern, São Paulo, Barcelona, Internacional e Benfica sem suas cores tradicionais? Ou então, o Corinthians sem a âncora e o Vasco sem a cruz de malta tingidas de vermelho? E o Atlético de Madrid, o Bahia, o Liverpool e o Sergipe? O que dizer do Roma, Fortaleza, Náutico, Sport e Paris Saint Germain? Quantas instituições em nosso País e ao redor do mundo? Na Arte? Música? Teatro? Escolas de Samba? Impossível, certamente, especificar.

Por fim, ressalte-se que este Artigo pretende contribuir para que a aceitação das diferenças de entendimentos sobre os mais variados temas, seja considerado algo natural. Propõe-se, inclusive, a colaborar para uma certa racionalização e democratização dos debates, sempre em elevado nível, nos inestimáveis fóruns, assim como, no âmbito das famílias e da sociedade brasileira.

HENRIQUE LUDUVICE

Engº Civil HENRIQUE LUDUVICE

*Ex-Presidente do CONFEA – 2 Mandatos.

*Ex-Presidente do CREA/DF – 2 Mandatos.

*Ex-Presidente da MÚTUA – 2 Mandatos.

*Ex-Secretário de Transportes do Distrito Federal.

*Ex-Secretário Geral do Fórum Nacional de Secretários de Transportes.

*Ex-Diretor Geral do DER/DF – 2 Governos.

*Ex-Presidente da ABDER – 2 Períodos.

*Ex- Presidente do Conselho Rodoviário do DF – 2 Períodos

*Ex-Presidente do Conselho de Administração do METRÔ/DF.

*Ex-Secretário de Transportes e Trânsito em Aracaju/Sergipe.

*Ex-Coordenador do Programa de Universalização de Energia Elétrica em 10 Unidades da Federação – 10 anos.

*Atuou como Engenheiro na PLANENGE, IRFASA, THEMAG e ELETROBRAS.

Tem gente com problemas com as palavras

Alexandre Santos

Outro dia, em algum trecho do voto que proferiu negando a existência de um poder moderador no Brasil conforme queriam os golpistas ao propor uma ‘intervenção militar constitucional’, o ministro Flávio Dino foi ao ponto central da questão e disse que as Forças Armadas têm caráter ‘subalterno’.

O uso da palavra ‘subalterno’ provocou urticárias em golpistas, especialmente naqueles que desconhecem o vernáculo.

Com efeito, se contrapondo à maioria que compreendeu perfeitamente aquilo dito pelo ministro, uma minoria iletrada considerou o adjetivo ‘subalterno’ ofensivo às Forças Armadas e começou a fazer confusão.

O general de pijamas Paulo Chagas, por exemplo, que nunca leu um livro completo em toda a vida, achando que ‘subalterno’ é ‘coisa de segunda categoria’, interpretou o texto do ministro como provocação aos generais.

Na realidade, como ocorre com muita frequência com ele, o general Paulo Chagas não conseguiu entender aquilo que leu e, como consequência, disse um montão de asneiras. Como sabem as pessoas que estudaram português, Subalterno é “um adjetivo substantivo masculino referente àquele que está sob as ordens de outro, que é subordinado ou inferior a outro em graduação ou autoridade’.

Esta é exatamente a condição na qual se encontram as forças armadas, que são subordinadas ao ministério da Defesa, que, por sua vez, é subordinado ao presidente da República.

Naturalmente, isto não traduz o pensamento dos golpistas, para os quais as Forças Armadas, mais precisamente o Exército, estão no topo da hierarquia política do País.

Sonha, bestão, sonha.

Alexandre Santos

Alexandre Santos é engenheiro e escritor. Preside o Clube de Engenharia de Pernambuco e a Associação Brasileira de Engenheiros Escritores, presidiu a União Brasileira de Escritores e faz a coordenação nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural. Autor premiado com livros publicados no Brasil e no exterior, Alexandre é o editor geral do semanário cultural ‘A voz do escritor’ e diretor-geral do canal ‘Arte Agora’.

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Sessenta anos depois! Demolindo o Forte Apache! Uma questão de coerência!

Por Affonso Abreu

Permito-me iniciar essa breve reflexão sobre o militarismo no Brasil, fazendo oportuna digressão, para trazer um pensamento do ilustre brasileiro Ruy Barbosa, manifestado no opúsculo “Contra o Militarismo – Campanha Eleitoral”, publicado no ano de 1910, que reverbera todo o seu imenso talento e impressiona por sua atualidade, in verbis:

Na paz ou na guerra, portanto, nada coloca o exército acima da nação, nada confere o privilégio de a governar. O exército não pode ter candidatos. Em um país livre só as opiniões desarmadas têm o direito de pleitear os cargos eletivos. As forças de terra e mar não existem coletivamente, senão para as funções que o texto constitucional lhe atribui: a defesa da pátria no exterior e a manutenção das leis no interior.

Sigo em frente!

Amanhã não vai ser outro dia, caro amigo Chico, se nada for feito para aplicar as devidas punições aos militares golpistas.

Amanhã não vai outro dia, se não for desmistificado o conceito tendencioso e infundado da existência de suposta superioridade moral e cívica das Forças Armadas sobre o Poder Civil.

O poder civil tem que desconstruir a simbólica e nefasta admissão da existência de uma casta superior de brasileiros, que habita o Forte Apache e a todas as demais “aldeias” espalhadas, segundo critérios, ditos estratégicos, por todo o território nacional. Caso contrário, seguirá existindo o histórico e endêmico militarismo e, consequente, golpismo militar que ocupa espaço no cenário nacional, desde a proclamação da República Brasileira, conforme a cronologia abaixo bem o demonstra:

  1. Proclamação da República (1889).
  2. Golpe de 3 de novembro de 1891.
  3. Primeira revolta da Armada (1891).
  4. Revolução de 1930.
  5. Estado Novo (1937).
  6. Deposição de Getúlio Vargas em 1945.
  7. Golpe de 1964.
  8. Golpe deflagrado e contido em 08 de janeiro de 2024.

E olha que aqui não estão elencadas muitas outras quarteladas e ameaças pontuais feitas pelos militares em outros momentos da história republicana, sempre acalentados, acobertados e justificados pelas “vivandeiras de quartéis”, prontas à rituais fascistas e histéricos, tais como acampar em frente aos prédios militares!

Recentemente, como está plenamente provado, comprovado e documentado, o plano golpista de Bolsonaro contra o Estado Democrático de Direito, contou com o apoio ativo e integral do militarismo nacional, especialmente dos generais Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Estevam Theophilo e com o almirante Garnier, assim como o general Freire Gomes e o brigadeiro Batista Júnior, que agora assumem uma posição contraria ao golpismo, que se nos configura muito suspeita, tendo em vista vir eivada e maculada por evidente omissão. Todos eram oficiais de carreira e seguidores das doutrinas ensinadas nas escolas de formação de oficiais das FFAA.

Pontue-se: a posição do general Freire Gomes que afirma ter ficado contra o golpismo e ameaçado Bolsonaro de prisão, se de fato ocorreu essa decisão, não deve servir de base para transformar esse militar em herói da pátria e da democracia. Tal atitude, como disto antes suspeita, nada mais foi que o exercício, aí sim, de seu múnus público constitucional. Em linguagem popular: nada mais fez que sua obrigação!

À toda evidência, novamente, os militares estão trabalhando na surdina, para que todos seus membros, que estão enredados com o atentado à democracia e destruição do Estado de Direito, sejam isolados, poupados e não responsabilizados por seus atos iníquos e ilegais.

Não há que se falar em volta dos militares aos quarteis, criando novamente a possibilidade de que de lá saiam, quando bem entenderem, para a pratica de ações antidemocráticas. Deve ser estabelecido, uma vez por todas, que esses militares são funcionários públicos e devem ter um comportamento cívico adequado a qualquer outra categoria funcional republicana.

As forças armadas são órgão de estado constitucionalmente subordinadas ao poder executivo e não uma casta ungida de poderes discricionários que podem ser exercidos ao seu bel prazer.

De uma vez por todas, deve ser feita e imposta a leitura correta dos termos do artigo 142 da Constituição da República, no sentido de que ali não há qualquer permissivo legal que admita o emprego das FFAA como intermediária entre os três poderes da república. Repudie-se, portanto, o entendimento de que a interpretação do referido artigo, encoraje uma ruptura do sistema democrático de governo. Que fique bem claro que o sistema constitucional brasileiro não prevê nenhuma função de poder moderador das Forças Armadas.

Finalizando aqui meu convicto apelo democrático contra o militarismo brasileiro, trago o ensinamento atualíssimo do ilustre brasileiro Flávio Dino, Ministro do Supremo Tribunal Federal, que em seu voto divulgado em 31/3, data que marcou os 60 anos do golpe militar de 1964, pontifica:

Com efeito, lembro que não existe, no nosso regime constitucional, um “poder militar”. O poder é apenas civil, constituído por três ramos ungidos pela soberania popular, direta ou indiretamente. A tais poderes constitucionais, a função militar é subalterna, como aliás consta do artigo 142 da Carta Magna.

A hora é agora e não pode ser perdida a oportunidade!

Forte Apache, adeus!

Militarismo, nunca mais!

Affonso Abreu
1º de abril de 2024