Reminiscências da Revolução dos Cravos, antes e depois.

Jean Marc von der Weid, abril de 2024

No dia 25 de Abril de 1974 eu estava em Toronto, hospedado na casa do Betinho que acabava de chegar do Chile, via embaixada e breve estadia no Panamá. Eu vinha de um périplo de dois meses pela América Latina, passando pelos EUA, a caminho de Paris. A viagem foi apaixonante e aprendi mais de política, sociologia, economia e história dos países que atravessei (Argentina, Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, México) do que em anos de estudos latino-americanos na França. Isto sem falar o que aprendi de geografia, cruzando por terra o longo continente. Mas a viagem, com alguns episódios espetaculares, não escondia a sensação de derrota que me acompanhava desde o golpe do Chile, agravada com a desistência de residir na Argentina, para onde escapei. Estava voltando para a Europa com o rabo entre as pernas, fugindo de golpes e me esquivando de ditaduras ao longo do trajeto. Lembrou-me um sombrio poema de Brecht… “naquele tempo em que trocávamos de países mais do que de sapatos”.

Betinho e Maria pareciam felizes com o refúgio no Canadá e cheios de planos para o futuro. Eu não tinha planos, nem ideia de como ia sobreviver, ainda por cima recém juntado com uma refugiada brasileira que tinha dois filhos, que me esperavam em Paris.

Precisava de uma injeção de ânimo e o jornal televisado daquela noite me deu uma overdose de esperança no mundo. Caiu o regime salazarista, o mais velho do continente e um dos mais velhos em qualquer lugar! Quase choro de emoção ao ver o povo cercando os tanques e colocando cravos nos canos dos fuzis dos soldados. Eu e o Beto passamos horas correndo atrás de notícias e lembrando fatos sobre Portugal.

Eu tinha estado na “terrinha” ano e meio antes, no outono de 1972, nas minhas primeiras férias desde que fui para a clandestinidade em setembro de 1968. Meu velho amigo Paulo Pinheiro, exilado em Paris e militante do PCBR, conseguiu um carro emprestado (um Quatre L, da Renault) e me convidou para um circuito que começou (para mim), em Annecy, fronteira com a Suíça, seguiu pelo vale do Ródano até Marselha, cruzou a fronteira com a Espanha por Andorra, seguindo por Barcelona, Sevilha e adentrando Portugal pelo Algarve. Paulo tinha saído do Brasil com o seu passaporte brasileiro e eu tinha o suíço, de modo que as nossas inquietudes ao entrar em países ditatoriais e aliados dos milicos brasileiros (Espanha e Portugal) eram, certamente, paranóias.

Rodamos Portugal de sul a norte, saindo pela Galícia. Com direito a uns 7 dias em Lisboa. Não tínhamos contatos com brasileiros em Portugal, mas um amigo português do Paulo, residente no Rio de Janeiro, estava de volta à pátria pela primeira vez, desde 1961, quando fugiu para o Brasil por estar implicado no movimento de libertação das colônias africanas. Como ele ficou rico, o regime afrouxou nos últimos anos e ele negociou o seu perdão em troca de investir em Portugal. Ou foi o que ele nos disse. Não me lembro do nome do personagem, mas ele nos ciceroneou em Lisboa e nos apresentou a uma amiga, responsável pela parte musical de um programa radiofônico dirigido aos imigrantes portugueses no Brasil. Atendia pelo nome sugestivo de Gioconda e conhecia tudo sobre fado e música portuguesa em geral. O amigo do Paulo logo voltou ao Brasil, mas a Gioconda se ocupou de nós todo o tempo em que estivemos em Lisboa, levando- nos a todas as tascas onde se tocavam fados autênticos, começando no Solar da Madragoa. Em particular me impressionou um bar, no Bairro Alto, onde o dono fechava as portas lá pela meia noite e se punha cantar um tipo de fado que eu não conhecia e que chamavam de “cantiga de marinheiro”. Era muito mais lento e dolente do que qualquer outro fado e muito bonito. O cantor, compositor e barman atendia pelo nome de Antonio dos Santos e tinha feito fama cantando no transatlântico Santa Maria.

Em todos os eventos a que fomos levados pela Gioconda fomos muito bem recebidos, com uma exceção. Ao entrarmos em uma festa de músicos onde estavam, entre outros, o Zeca Afonso, o Zé Mario Branco e outros mais que depois vim a saber serem todos de esquerda, fomos recebidos com uma frieza beirando a hostilidade. Depois de levarmos um gelo consistente dos presentes, assistimos uma discussão entre a Gioconda e um dos músicos sobre a questão da censura no regime de Marcelo Caetano. O objeto da discussão era a proibição da divulgação pelas rádios do “Grândola, vila morena”, do Zeca Afonso, e que seria usada como senha para deflagrar o movimento do 25 de abril, menos de dois anos depois. Gioconda defendia que não havia censura e provocou indignação dos presentes, o que a levou a se retirar, nos rebocando. Fiquei com a pulga atrás da orelha, mas até então não tínhamos tido nenhuma razão para vê-la como reacionária, embora fosse do tipo alienado. Ao que me lembro as nossas conversas giravam sobre música, comida, comida e música. Nada de política.

Não demorou muito até que houve a revolução dos cravos, abriram-se os arquivos da polícia política e qual não foi a nossa surpresa quando surgiram denúncias implicando o amigo do Paulo, a Gioconda e o fadista como informantes da PIDE, a tenebrosa polícia política do salazarismo! O que veio a explicar a reação dos músicos na festa citada acima. Com toda a nossa paranóia em relação à segurança, estivemos todo o tempo nas mãos de informantes da polícia, sem que nada nos acontecesse. Ou não tínhamos a menor importância para eles ou fomos beneficiados pela amizade ipanemense do portuga com o Paulo.

Nesta primeira estadia em Lisboa, nos hospedamos em uma pensão no Largo do Rato, perto da Universidade de Lisboa. Justo em frente ao portão da Universidade estava um café onde todos os dias tomávamos o que os tugas chamam de pequeno almoço. Não costumávamos acordar cedo e o nosso pequeno era já quase um almoço, pela hora em que o comíamos. Penso que foi no nosso último dia em Lisboa que, de repente, começou uma algazarra que misturava palavras de ordem, apitos, bombas e comandos policiais. Uma manifestação estudantil estava em curso, com a inevitável repressão. Nuvens de gás lacrimogênio levaram os garçons do bar a fechar as portas, mas não antes que uma boa dúzia de estudantes entrasse, fugindo do gás e da polícia. Pouco depois policiais forçaram as portas, enquanto a garotada se sentava nas mesas e os garçons serviam bicas (café em lisboeta) e sandes (sanduíches, idem), como se fossem clientes normais. Um casal veio parar na nossa mesa e conversamos como se fossemos amigos do peito.

Depois de uma perfunctória busca que não deixou de ficar concentrada nos suspeitos (a idade era não disfarçáveis), os pides se foram, sem prender ninguém. Em minutos, os manifestantes também sumiram, antes que eu pudesse discutir com eles o movimento estudantil, lá e cá.

Quase dez anos depois conheci um português, engenheiro agrônomo que estava em missão na Guiné Bissau, tal como eu. Encontrei uma alma gêmea naqueles rincões perdidos, um dos lugares mais pobres e, apesar disso, um dos mais fascinantes que conheci. Trocando histórias do passado fiquei sabendo que ele tinha sido um dos dirigentes estudantis de um partido político clandestino, o MES, Movimento de Esquerda Socialista, que tinha uma forte semelhança com a Ação Popular (AP), onde eu militei entre 1968 e 1981. E, incrível coincidência, ele era um dos estudantes que se refugiou naquele bar onde eu e o Paulo tomávamos nosso tardio café da manhã. Antes que perguntem, ele não foi um dos que se sentou na nossa mesa.

Em outro momento das minhas histórias em Portugal, estivemos muito perto de nos conhecer. Foi no verão de 1975, quando participei de um grupo de economistas que foi cooperar com a reforma agrária do governo do MFA na região do Alentejo. Passei uns dois meses baseado na sede da agência governamental que assessorava os assentados nas terras desapropriadas, em Évora. Na mesma época Carlos chefiava um grupo de agrônomos em Alcácer do Sal, na mesma região, mas não nos cruzamos ou não nos conhecemos naqueles tempos tumultuados, onde tudo era discutido e atuado às pressas. Lembro de uma polêmica que rachou o grupo de assessores portugueses e o dos franceses: devíamos recomendar a manutenção das muitas sebes que dividiam propriedades e as áreas de vegetação nativa? Os neo-camponeses que se apropriaram das terras eram, pelo que pude saber, assalariados agrícolas e não tinham expertise como produtores independentes. Para eles o ideal era passar o rodo em tudo que limitasse a circulação de tratores, enquanto os críticos apontavam para um inevitável desequilíbrio ambiental e perdas de solo no futuro. Ganharam os agressivos assentados e as sebes e coutadas foram eliminadas, mudando totalmente a paisagem rural da região, hoje dominada por vinhas e pouquíssimo arborizada.

A viagem por Portugal em 1972 ficou registrada em 6 rolos de fotos que tirei e que revisito de tempos em tempos. Circulamos por pequenas estradas no nosso périplo, parando para falar com as gentes nos campos e nas aldeias. Era difícil puxar conversas que tocassem em política e qualquer insinuação neste sentido encontrava um silêncio resoluto. Ficou a lembrança de conversas sobre a vida nos campos e as perguntas sobre o Brasil, com as inevitáveis questões do tipo: “pois são do Rio de Janeiro? Então devem conhecer o meu primo fulano, que para lá se foi há uns anos”. Não, não se trata do que os brasileiros consideram a burrice galega. É apenas uma questão cultural. O mundo dos nossos interlocutores era o das aldeias, onde todos se conhecem e eles não tinham a menor ideia das dimensões da capital fluminense.

Falando de coincidências, houve outra espantosa. Chegando tarde da noite em uma aldeia perto do Porto, tivemos dificuldades de encontrar um restaurante, tasca ou bar aberto onde pudéssemos matar uma fome de todo tamanho. Depois de rodar um bocado achamos uma pequena tasca que tinha uma tabuleta sobre a porta, com o emblema do … Vasco. Sim, do clube carioca de futebol. Já estava fechando, mas o proprietário, ao nos reconhecer como brasileiros, aceitou reacender o fogão e requentar um caldo verde acompanhado por um pão com manteiga. Delicioso, na mesma proporção da nossa fome. O gajo sentou-se à nossa mesa e ficou conversando fiado.

“Vivi no Brasil por 15 anos e voltei em 69. Tinha uma tasca perto da Central do Brasil. Foram tempos muito bons para mim”.

“E por que resolveu voltar? Saudades da terrinha?”, perguntamos.

“Nada disso. É que fui preso pelo exército e acusado de ajudar terroristas e assaltantes de banco”.

“Como assim? Meteu-se em política?”

“Deus me livre! Foi uma injustiça horrível. Ocorre que havia uma agência do Banco do Brasil ao lado do meu estabelecimento e houve um dia que ela foi assaltada. Os terroristas esperaram o momento de fazer a ação comendo na minha tasca e os soldados ficaram sabendo disso, não sei como. Alguém do banco devia estar tomando um café e viu que eu conversei muito com o grupo dos assaltantes, como sempre faço com novos fregueses. Levei-os até a porta e notei que levavam sacolas de feira com algo pesado, mas nem imaginei que fossem armas. Os três se despediram, muito simpáticos e prometendo voltar. Entraram no banco ao lado. A raiva dos soldados parece que teve a ver com o fato de que um oficial, à paisana, estava na fila do caixa e ficou humilhado por ter sido empurrado para o banheiro. Fui levado para o quartel da polícia do exército e, até se convencerem que eu não tinha nada a ver com aquilo, tomei uma coça desalmada. Não pensei duas vezes. O Brasil tinha ficado perigoso e era melhor voltar para Portugal.”

“O amigo deve ter visto fotos de terroristas no seu interrogatório, reconheceu algum deles?”, perguntei.

“Sim, o tipo mais calado do grupo tinha cara de índio e me mostraram uma foto dele no quartel.”

Nos despedimos da infeliz vítima das arbitrariedades que conhecíamos tão bem e fomos catar um lugar para dormir. Já no carro eu comecei a rir e contei para o Paulo que eu tinha ouvido uma descrição desse assalto na minha cela da Ilha das Flores. Os três “terroristas” eram guerrilheiros do MAR, Movimento Armado Revolucionário, nesta ação capitaneados pelo José Duarte, ex-líder da revolta dos marinheiros dias antes do golpe de 64. Ele era descendente da tribo Potiguar, egresso do município de Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte. Meu amigão até hoje, o Zé tinha e tem um ar feroz que não combina com a imensa bondade e generosidade do seu caráter. Mas a pinta era daqueles que não comem mel, comem abelha.

Voltando ao dia 25 de abril e à Toronto, decidi mudar a minha passagem Montreal/Paris e fazer uma visita a Lisboa. A revolução dos cravos acelerava os nossos corações e adoçava a nossa boca, amarga com tantas derrotas na América latina. Queria ver aquilo de perto.

Embarquei no dia 30, chegando a Lisboa no dia primeiro de maio, dia do trabalhador em quase todo o mundo menos nos EUA e … em Portugal. Seis dias após a queda do regime salazarista aquela ia ser a primeira grande manifestação popular em liberdade.

O avião para Lisboa estava quase vazio e o aeroporto estava, literalmente, deserto. Não havia táxis ou ônibus circulando e escapei de ficar isolado na chegada ao implorar uma carona para um casal que eu vira no voo e que tinha sido recebido por amigos ou parentes. Deixaram-me na avenida da Liberdade, perto do Rocio, e tanto naquela grande via como por todo o caminho até lá não se avistava vivalma. Achei uma pensão onde apenas um velho porteiro atendia este único hóspede e me instalei.

“Onde está toda a gente?”, perguntei ao velho.

“Foram todos comemorar esta palhaçada dos militares”, respondeu, azedo, apresentando de cara suas credenciais salazaristas. “Estão no Campo Pequeno, festejando o primeiro de maio, dia do trabalhador que não trabalha”.

Sem transportes visíveis subi a pé a longa avenida e fui ouvindo, cada vez mais retumbante, o fragor de milhares de vozes. Cantos, palavras de ordem, assobios, apitos, barulhos indefinidos. Cantavam Grândola, o Avante, hino do Partido Comunista Português, a Internacional, outros que não conhecia. A arena de touros transbordava de gente e foi difícil me esgueirar até entrar. Militares fardados, militantes com camisetas de partidos, lenços vermelhos em profusão, centenas de milhares de pessoas em delírio, êxtase. Afundei na massa, dissolvendo a minha individualidade para me tornar apenas mais um naquele mar de felicidade.

Me lembrei de uma peça de teatro grego na qual o corifeu dizia ao protagonista, em um momento de extrema felicidade: “morra agora”. Significava que ele nunca teria outro momento tão perfeito na vida e que era melhor não sofrer com as decepções que não deixariam de acontecer. Apaguei a lembrança e me entreguei à alegria contagiante. Como cantou o Chico: “foi bonita a festa, pá…”. Inesquecível!

Com o fim da manifestação, onde tive dificuldades de entender discursos com forte sotaque, que me era estranho, transmitidos em maus auto falantes, fui buscando o rumo da minha pensão em uma Lisboa onde eu não conhecia ninguém, salvo a Gioconda citada acima. E, mais uma coincidência incrível, ouvi chamarem o meu nome.

“Ó Jean, és mesmo tu?”

Deparei-me com um conhecido, que ocupava o quarto ao lado do meu na Casa da Suíça, residência universitária de Paris. O Quincas! Era um antropólogo que fazia mestrado na Sorbonne, fugido da convocação para o serviço militar em Angola. Ficamos amigos quando ele me integrou em um grupo de amigos portugueses e angolanos, com os quais compartia, mensalmente, as alheiras, farinheiras, queijos da Serra da Estrela, presuntos e doces enviados pela sua família. Era gente de alta classe média que tinha uma quinta na dita Serra, na localidade de Nelas, de onde os quitutes artesanais eram recolhidos paraadoçar o exílio do pimpolho. As festas mensais eram ocasião para comer, beber (vinhos franceses, os portugueses ainda não eram o que são hoje) e discutir política.Deste seleto grupo fazia parte o Zé Gonçalvez, conhecido como Zé Angolano e um dos dirigentes do Movimento pela Libertação de Angola, o MPLA, que havia estado exilado no Brasil entre o levante de 1961 e o golpe de 1964, vinculando-se à recém fundada Ação Popular.

Lembro que na minha despedida de Paris, quando fui para o Chile em setembro de 1973, o Zé tinha uma avaliação pessimista sobre o destino do movimento anticolonialista em Angola. Ao contrário dos movimentos na Guiné, que tinha isolado o exército português na capital, Bissau, ou em Moçambique, onde a Frelimo controlava amplas áreas do país, em Angola o exército português tinha empurrado os guerrilheiros para a fronteira com a Zâmbia reduzindo a ação armada a episódicas incursões a partir deste refúgio no país vizinho. Os outros dois amigos deste grupo eram um capitão português e um soldado angolano, ex-combatentes da guerra colonial, ambos desertores e refugiados na França. O pessimismo do Zé foi desmentido em menos de seis meses pela revolução dos cravos e ele retornou a Angola para tornar-se vice-Ministro dos Transportes, responsável pela marinha comercial do novo país. Hoje ele mora, se ainda está vivo, em Belo Horizonte.

Depois de trocarmos informações sobre nossos respectivos itinerários desde o nosso último encontro, o Quincas me perguntou:

“Tens uns dias livres antes de voltares a Paris? Parto amanhã para Nelas, aplicar uns questionários relativos à minha tese, que quero entregar o mais rápido possível. Se queres conhecer o Portugal profundo venha comigo.” A tese do meu amigo era sobre a migração portuguesa que tinha levado quase todos os homens da aldeia de Nelas em idade de trabalhar para se empregarem na fábrica de automóveis francesa Citroen. Em Paris eles tinham formado uma comunidade, morando juntos no onzième arrondissement, se bem me lembro.

Aceitei o convite e, no dia seguinte encontrei o Quincas na estação de comboios (trens) de Santa Apolônia, próxima do Rocio. Após muitas horas em um trem lento a ponto de dar sono chegamos a uma parada que não era exatamente uma estação. Encontramos uma pequena multidão de camponeses, quase todas mulheres, adolescentes e velhos, que aguardavam ansiosos a chegada “do menino Quincas”.

Foi um choque. Senti-me como o personagem do Eça de Queiroz, Jacinto de Tormes, no delicioso livro “A cidade e as serras”, na sua volta às origens. Fomos caminhando por um par de horas até chegar à magnifica casa da quinta da família do Quincas, no alto de um morro e de cujas janelas se podia ver o vale com modesto casario de pedras da aldeia.

Comemos como Pantagruel, ou, como diz o ditado gaúcho: “na qualidade como um frade, na quantidade como um soldado da brigada” e fomos dormir esgotados pela viagem interminável.

No dia seguinte, iniciamos um exercício de visitas aos aldeões, que insistiam em nos matar de tanto comer. Foram uns três ou quatro pequenos almoços e outros tantos almoços, lanches, jantares e ceias. Uma comilança de pratos simples e deliciosos, tudo com produtos locais, sempre em quantidades absurdas. Entendi que tudo ali dependia da família do Quincas e o “menino” era adorado pelos aldeões.

Neste Portugal profundo a revolução dos cravos era uma abstração. O único fato novo para eles é que o “menino Quincas” tinha podido voltar. As lutas políticas, Salazar, o MFA, os comunistas e socialistas que eram os grandes atores na cidade grande, tudo era algo remoto e sem muito sentido.

Para não morrer de indigestão por excesso de comida abreviei a minha estadia e tomei o trem para Lisboa no terceiro dia. Nunca mais visitei aquela aldeia, mas passei por perto em uma das minhas muitas visitas a Portugal durante os anos de exílio em Paris, começando pela já citada participação na reforma agrária no Alentejo.

O Portugal de hoje é outro país, irreconhecível para quem conheceu-o antes da revolução dos cravos e mais ainda com a integração na União Europeia. Mas quando o energúmeno se apossou do governo em 2018, minha primeira reação foi planejar um recuo para passar o tempo infeliz do seu governo com um mínimo de desgosto quotidiano. Planejei montar uma experiência de produção orgânica na quinta do meu amigo Carlos, no Alentejo, frustrada pela pandemia de covid. Foi melhor assim, pois pude participar da luta para afastar a ameaça fascista, dando a minha modestíssima contribuição.

Adoro Portugal, apesar da enxurrada de bolsonaristas que migrou para lá. Fico lá mais à vontade do que em Paris, onde vivi 9 anos. Segue sendo, apesar dos avanços eleitorais da extrema direita, um país e um povo para lá de simpático.

Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

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