🌹 Águas mais profundas nos esperam 🌻

Marcio Anatole de Sousa Romeiro

“NO PLANO CONCRETO DA REALIDADE, NÃO HÁ MAL ABSOLUTO. HÁ O MAL PRIVATIZAÇÃO DO  BEM EM UM SUJEITO QUE TEM OUTROS BENS, E ATÉ UM BEM RELATIVO AO MAL E AGRAVANDO EVENTUALMENTE O MAL QUE FAZ”

(Carlos Josaphat, in Fogo Amigo Sobre o Velho~ Frade – Lilian Contreira [organizadora], São Paulo: Parábola Editorial, 2016, p. 290)

Um fenômeno espetacular tem marcado a vida política brasileira após,  digamos, apenas para se ter uma baliza histórica, o golpe temer de 2016. Refiro-me à pública disputa política maximizada pelos efeitos das redes sociais, graças às quais, opinião passou a também ser arma política e  ferramenta para a disputa de poder e de projeto de sociedade.

Neste ponto a eleição do Lula e a vitória da esquerda em 2022, efetivamente, mostraram que no arcabouço da recente, mas consistente, democracia brasileira nenhuma posição, seja ela vitoriosa ou derrotada,  está definitivamente consolidada. Ao contrário, a cada dia, diante de cada fato  novo, o que se tem é a renovação de uma luta que está longe de terminar porque trata-se de uma disputa radical e não apenas superficial ou por perfumarias.

O genocida foi derrotado, nas urnas, por uma pequena margem a favor do Lula porque os eleitores votantes entenderam que para além de barrar o “mal banalizado” era possível avançar na direção do distante e utópico paraíso, perdido ou esperado.

Nesse campo minado, ordinário e extraordinário se misturam. O sociológico provoca o filosófico e este nos instrumentaliza para encarar os recortes propostos pelo primeiro.

De fato, a cada dia,  senão a cada momento, um dado novo surge. Entre eles estão as pesquisas de opinião. Evidentemente, também elas são parte desta ampla disputa e, por mais objetivas que queiram ser, são escritas com opções ideológicas e faladas com sotaques particulares sempre determinados por interesses explícitos ou implícitos.

Como militante de esquerda e eleitor do Lula é claro que fico incomodado com o dado segundo o qual a aprovação do governo diminui de uma pesquisa para a outra. E isso principalmente porque já se está em campanha para eleger os próximos prefeitos e vereadores.

Aqui, recorro à Filosofia Politica para que, com o teólogo,  autor da frase retida em epígrafe,  possa dizer que por si só qualquer pesquisa de opinião é um número que não vira matemática se não forem levados em consideração ao menos três princípios orientadores de análise, a saber: ¹) há que se libertar dos preconceitos, ²) bodes expiatórios não resolvem e ³) o mal não pode ser banalizado.

O recurso à filosofia se deve ao fato de que efetivamente avançamos muito, mas não ainda o suficiente.

Um ano e pouco de governo Lula não nos pode deixar esquecer que a vitória de 2022, em segundo turno, foi realmente um feito que mudou a história recente do Brasil.  Uma realização que, por outro lado, não pode igualmente fazer ignorar que um longo caminho ainda se tem pela frente. O fascista foi derrotado nas urnas, mas o fascismo ainda não deixou de ser uma ameaça. Ele só muda de pele. Tarcisio de Freitas, o governador de São Paulo, por exemplo, não apenas leva adiante seu projeto privatização como também zomba dos defensores do Estado Democrático de Direito ao dizer: “não estou nem ai”. Um completo desrespeito pelo Direito Internacional, pela ONU,  para com as conquistas culturais alcançadas no pós segunda guerra mundial. Uma verdadeira afronta ao paradigma da universalização dos Direitos Fundamentais.

Ora, o que estou tentando dizer é que os números das pesquisas de opinião são dados objetivos que atendem interesses subjetivos. São partes na própria estratégia de conquista ou de manutenção do poder.

Com Lula obtivemos uma vitória eleitoral importante,  mas não, repito, uma conquista definitiva.

Agora que as disputas por voto se acirram particularmente onde a poderosa força do poder é novamente posta em confronto, a clareza ideológica é essencial.

Para a direita que se aglutina entorno da máquina pública,  e, em São Paulo,  não necessariamente em apoio a Ricardo Nunes, candidato à reeleição,  enfraquecer Lula é a melhor forma de enfrentar a pré-candidatura Boulos/Marta. Daí a importância de analisar os números considerando os três princípios apontados anteriormente.

Superar os preconceitos. As circunstâncias, não há necessidade que se repita, hoje são únicas.

Em São Paulo, como em outras cidades do país, PT e PSOL se unem. Os projetos partidários apontam, portanto, para desafios suprapartidarios. O médio prazo prevaleceu sobre o curto prazo. A corrida eleitoral sinaliza para um projeto de poder que tem como útero a base da sociedade, mas seguido da consciência de que tal projeto não acontecerá satisfatoriamente sem educação política e vacinação contra a política rasa das fake news,  da compra de votos, do clientelismo e do apequenamento da cidadania.

O preconceito pode até ajudar a eleger um ou outro parlamentar,  mas muito pouco contribui para a governabilidade democrática da cidade como um todo. Esta última, uma polis democrática, só se alcança com o amadurecimento político e com maior participação do voto consciente na totalidade dos votos. O que demanda trabalho de base e projeto de sociedade.

O segundo princípio diz respeito à “não se aceitar bodes expiatórios “. Uso a noção de bode expiatório de acordo com o sentido que René  Girard dá a ela. Isto é,  todo e qualquer mecanismo usado para esconder, maquiar ou deformar a realidade.

Base do preconceito e mais ainda de qualquer intervenção racista, o bode expiatório é a prática de tentar unir todos contra um. E issob é o que tenta fazer a direita quando, seguindo métodos bolsonaristas, por exemplo, para intimidar, reprimir e atacar explicitamente quem defende um modelo igualitário,  justo, livre e solidário de sociedade abre uma CPI, como aquela proposta pelo vereador bolsonarista de São Paulo, para investigar e condenar o padre Julio Lancelloti.

Contudo, não é apenas no campo da direita política que essa prática acontece. Claro que não estou dizendo que o Lula e seu governo estão acima das críticas, apenas ressalto que algumas observações feitas ao se considerar as pesquisas não visam tanto os fatos a serem analisados,  mas antes os destinatários destas análises. Na armadilha das narrativas aceitam o atalho perigoso de tratar como bode expiatorio quem ou o que é primeiramente uma ponte para o utópico,  para a realização da luta e,  sobretudo, uma possibilidade para se alcançar o objetivo do embate político, a saber: a superação da maldade pela efetivação da Utopia. Em outras palavras: uma nova ordem e não apenas uma narrativa para uso circunstancial.

A conjugação dos dois princípios – preconceitos e bode expiatorio – levam ao terceiro: o “mal não pode ser banalizado”.

A expressão ‘banalização do mal’ remonta aos filosóficos esforços de compreensão da humanidade e de suas experiências de convívio social no pós guerra.  Hannah Arendt muito contribuiu nessa sistematização que hoje se apresenta nas manifestações de rua ou nos card veiculados nas redes sob a síntese: “Sem Anistia”, afinal o mal não pode ser banalizado.

A maldade praticada, defendida e propagada de forma concreta e claramente identificada desde os tempos do golpe temer, para não precisar ir mais longe, não pode ser esquecida porque representa uma radicalidade (sociológica) de uma forma golpista de fazer politica.

Não se trata de maniqueisticamente opor golpe a democracia,  mas de reconhecer que só há golpe e, por extensão,  golpista, onde não há democracia. Daí se ter claro que o mal radical em política, isto é,  a ameaça fundamental ao bem politico maior – representado pela democracia  –  não pode ser aliviado.

Quando escrevia este texto me deparei com a notícia de que o prefeito de São Paulo autorizou uma homenagem a Michelle Bolsonaro no Teatro Municipal em cerimônia reservada. Justamente a ela que no dia 25 de janeiro de 2024, na Avenida Paulista,  pedia a fim do Estado Laico e a volta da teocracia ou ao menos da religiocracia. Seria isso saudade das Guerras de Religiões que assolaram a Europa? Ou das cruzadas que antes destas guerras pintaram de sangue a formação de grandes fortunas? Ou simplesmente uma ressentida vontade de padroado e de cristandade tardia?

Difícil é colocar um ponto final neste debate justamente porque seus desdobramentos são muitos. Porém só mais um aspecto antes de terminar. Não nos iludamos. A direita de sobrenome Nunes, Michelle ou Freitas disputa o voto do eleitor, também do paulistano, não apenas com a arma das pesquisas, mas igualmente com a munição de um projeto de sociedade. Daí a urgência de se ir para águas mais profundas onde a formação e a convicção políticas são essenciais.

Marcio Anatole de Sousa Romeiro

Mestre e Doutor em filosofia pela Universidade Católica de Louvaina, Bélgica. Professor de História no CEU ALVARENGA- São Paulo.

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